D. Luís da Cunha, por João Maria Caggiani (1842)
Por ocasião da recente edição crítica do Testamento Político ou Carta de conselhos ao Senhor D. José sendo Príncipe, da responsabilidade de Abílio Diniz Silva, com a chancela da Biblioteca Nacional de Portugal, apresentamos um excerto da mencionada carta, da autoria de D. Luís da Cunha.
Este diplomata português, que nasceu em Lisboa em 1662, vindo a falecer em Paris, em 1749, formou-se em Cânones pela Universidade de Coimbra e foi um reconhecido homem do seu tempo, desempenhando uma importante missão fora de portas. Citando Abílio Diniz Silva, D. Luís da Cunha foi um embaixador português que "desde 1697
[viveu] nas Cortes mais ilustradas da Europa (Londres, Haia, Hanôver, Madrid, Paris, Bruxelas)". (p. 32)
Terá sido no ano de 1742 que "D. Luís da Cunha sentiu a necessidade, ou até o dever (...), de redigir uma Carta de Conselhos ao Príncipe D. José, chamando a atenção do futuro rei para os graves problemas que se punham a Portugal, e para as urgentes e necessárias medidas de os resolver. Dever, porque tinha consciência da responsabilidade que lhe cabia por ser o mais antigo ministro em exercício, e pelo prestígio que lhe dava a sua longa carreira diplomática, durante a qual observou com lucidez os problemas dos países europeus que conheceu, e reflectiu nas soluções que neles encontrou para a resolução das dificuldades de Portugal. Soluções que nalguns casos ele sabia serem demasiado ousadas, contrariando interesses e ideias estabelecidas, e que pela sua contundência transformaram o Testamento num importante libelo reformador."(p. 28)
“(…) O que
logo salta aos olhos é que Portugal não tem, nem frutos nem géneros, para se
permutarem com os que nos entram de fora, não só quanto à qualidade, mas também
quanto à quantidade e variedade. E para prova do que digo, não falarei nos
géneros da desigualdade do comércio que temos com Castela, em prejuízo de
Portugal, porque de todos é bem sabida, estando à porta; mas ajunto a lista dos
frutos e géneros que os estrangeiros tiram de Portugal, e o que nele
introduzem, como por exemplo:
Os Franceses
tiram de Portugal, couros em cabelo, pau do Brasil, laranjas, limões, azeite,
sumagre, marfim, lãs, amêndoas, figos, passas, peixe salgado, presuntos, óleo
de copaíba, salsaparrilha, azeite de baleia, vinhos de Portugal, da Madeira,
sabão de todas as castas, melaço, açúcar, tabaco do Brasil, casquinha, cravo do
Maranhão, sebo, cacau, baunilha e paus para tintas.
É de reparar
que os Franceses sempre foram aumentando os direitos da entrada dos ditos
frutos e mercadorias, desde o ano de 1664, sem que usássemos da represália,
como seria justo, levantando-lhes também à proporção os direitos da entrada dos
que metem em Portugal, o que lhes seria mais sensível, porque são em muito
maior quantidade e de melhor qualidade, a saber: em primeiro lugar, de Paris
uma droga a que chamam moda, que vai por toda a Europa, e segundo diz o
marechal de Vauban (…) é um dos melhores ramos do comércio de França.
Mandam de
Paris, estofos de lã, e barbilhos da fábrica de Paris, luvas de castor e de
meio castor, e outras, bastantes chapéus, cabeleiras, boldriés lisos e bordados
em ouro e prata, leques de todas sortes, pérolas, sinais,
espadins de prata e de cobre, dourados e prateados, botões de cobre dourados e
prateados, e em cor, caixas de prata e douradas, algumas de ouro, e de
tartaruga, volantes com ouro e prata lavrados, e de todas as cores, castiçais
de cobre prateados, jarros, bacias, e outras mais coisas desta natureza,
sapatos de homem e de mulher, (…) palatinas de várias sortes, rendas de seda
crua, brancas e negras, fivelas de prata, de metal, e de pedras falsas, brincos
e girândolas de pedras falsas, (…) véstias bordadas em ouro e prata, meias de
seda e bordadas, fitas de ouro e prata da fábrica de Paris, e alguns panos de
linho para camisas.
De Lião se
manda toda a sorte de primaveras, nobrezas, estofos de ouro e prata, fio de
ouro e prata, galões de ouro e prata, abotoaduras do mesmo, boldriés de seda,
meias de seda, fitas de ouro e prata, lavradas e lisas. De Ruão, lenços de
algodão, várias sortes de estofos do mesmo, panos para vestidos, águas ardentes
(ainda que a entrada seja proibida), couros de vitela, calções e luvas de
carneira e camurça, vinagres de cidra, caixas de tartaruga, de corno, e óculos.
De Saint-Étienne várias sortes de estofos de linho, riscados e lisos. De Amiens,
barreganas, camelões, estamenhas e outra sorte de fazendas de lã, e barbilho. (…)
De Morlaix e Nantes, bretanhas, esguiões, papel pardo e velas de sebo. Da Flandres
francesa, cambraias lisas e lavradas, alguns guardanapos, toalhas e rendas de
linhas. (…)
Os Ingleses
tiram de Portugal vinhos em grande quantidade, azeite moderadamente, couros da
Baía, pau do Brasil, laranjas (…).
Mandam para
Portugal panos, estamenhas, droguetes, sarjas, sempiternas, baetas, meias de
seda e de lã, chapéus (…) e outras mais coisas.
Os Holandeses
tiram de Portugal quase o mesmo que os Ingleses (…).
Metem em
Portugal, meias grossas de lã e de fio, panos de Leyde e camelotes, sarjas,
veludos, (…) e outras coisas mais.
Pelo que
toca ao que sai de Portugal para as nações do Norte, e estas metem em Portugal,
não vale a pena de entrar nesta individuação, porque o que elas tiram é muito
pouco, e o que metem é por mãos dos Holandeses, (…) e são estes os que fazem o
maior ganho, pelas comissões que se lhes mandam.
A respeito
do que os Italianos tiram de Portugal, não estou cabalmente instruído, só sei
que já foi maior a quantidade dos tabacos e açúcar que sacavam, e que navegam
para Portugal muitos veludos, damascos de Génova, outros géneros de sedas,
muito papel, e vidros.
À vista pois
do referido, se pode fazer um cálculo dos poucos efeitos que temos para
permutar com os estrangeiros, e que o excesso lho devemos pagar em dinheiro, o
que mais facilmente se pode saber, se se mandar fazer um balanço nas
alfândegas, porque dele constará o que sai e o que entra. Mas não posso deixar
de dizer que nos direitos de entrada que os estrangeiros pagam, há um grande
abuso, porque sobre serem neles favorecidos conforme as ordens de S. Majestade,
os que têm na alfândega as suas fazendas, se acordam com os oficiais para lhas
avaliarem em menos de metade, o que tenho por confissão dos mesmos mercadores
que negoceiam em Portugal. (…)
Estas são as
minhas ideias a respeito do sobredito; mas a principal seria examinar quais são
as fazendas estrangeiras que poderíamos proibir por totalmente inúteis, as
quais podíamos nós mesmos fabricar, para delas não necessitarmos, e quais
poderíamos navegar nos nossos navios, tirando-as em direitura dos lugares onde
as vão buscar os Holandeses para as mandarem para Portugal.”
Testamento
Político de D. Luís da Cunha ou Carta de conselhos ao Senhor D. José sendo
Príncipe,
introdução, estudo e edição crítica de Abílio Diniz Silva, Lisboa, Biblioteca
Nacional de Portugal, 2013, pp.122-125.