|
Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), A Arte Poética (1674)
|
CONSELHOS LITERÁRIOS
Alguns talentos há, cuja brumosa ideia
em densa nuvem só se exprime e se encadeia:
nem a luz da razão a sabe penetrar.
Antes pois de escrever aprendei a pensar.
Conforme a ideia for mais ou menos escura,
mais confusa há-de ser a expressão, ou mais pura.
O que bem se concebe expõe-se claramente,
e o termo adequado irrompe facilmente.
Sobretudo, ao escrever, que a língua respeitada,
mesmo a quem se exceder, se mantenha sagrada!
Em vão apreciarei um som melodioso,
se impróprio for o termo, e o uso vicioso.
Não admito assim pomposos barbarismos,
nem num verso de truz soberbos solecismos…
Sem pureza da língua o poeta mais divino
não passará jamais de um escritor indigno.
Com ócio trabalhai (o tempo não interessa!),
e desdenhai de quem se atreva a dar-vos pressa.
Se rápido, a rimar, o estilo tiranizo,
não mostro então valor, mas só falta de siso.
De um rio gosto mais, que, sobre a mole areia,
num prado todo em flor lentamente passeia,
do que de uma torrente, em trágico furor,
que transbordando inunda os campos em redor.
Apressai-vos, mas só com sábia lentidão;
sobre o mesmo lavor voltai a pôr a mão.
E tratai de o limar, e tornar a limar:
Acrescentar é bom; melhor inda é riscar…
Numa obra que esteja eivada de defeitos,
nem hão-de salientar-se alguns passos perfeitos.
É preciso que tudo em suma se entrelace,
que ao início responda o próprio desenlace.
Com arte delicada as peças ajuntadas
hão-de um todo formar das partes mais variadas.
E o discurso jamais se afaste do seu rumo
para ao longe brilhar com imagens de fumo…
Boileau, L’Art poétique, Canto I,
vv.147-82, in “Vozes da Poesia Europeia – II”, traduções de David Mourão-Ferreira,
Colóquio-Letras, número 164,
maio-agosto de 2003, pp.193-194.