Fonte: Fundação José Saramago
Para relembrar José Saramago na data do seu nascimento, aqui se deixam alguns excertos de textos de autores estrangeiros, publicados na Revista Camões, nº 3, Outubro-Dezembro de 1998, evocativos da sua obra e de alguns dos traços mais característicos que a marcam.
A NOVA MANEIRA DE ESCREVER - Não foi nada premeditado, veio como uma inspiração. Pela primeira vez o narrador apareceu no texto. Não como um "eu" e absolutamente não como o seu próprio eu, "mas como uma instância que cria a justiça, que lá está para separar o bem do mal". Madeleine Gustafsson, "A inspiração decorre da voz interior", in Dagens Nyheter
DA PONTUAÇÃO - Como se compreende, tudo aqui é uma questão de fronteiras: fronteiras do real e da ficção, mas também fronteira da palavra. Saramago recusa, com efeito, o uso tradicional da pontuação. Os diálogos oferecem-se assim como uma sequência quase ininterrupta de frases, sem que as interrogações e as exclamações sejam traduzidas tipograficamente. Resulta disto a génese de um verbo neutro, descarnado, desligado de qualquer suporte, de qualquer identidade: imemorial, este verbo circula de indivíduo em indivíduo, para além das épocas, sem nunca se fixar (...). As vozes do morto e do vivo, do verdadeiro e do falso misturam-se assim inextricavelmente. Stéphane Zékian, "Prosadores portugueses: José Saramago", in Prétexte
DA ORALIDADE - Um escritor é a procura de um estilo que unifique a sua obra. Saramago soube dotar a sua prosa de uma respiração inexorável e tenaz que actua sobre a linguagem com um ritmo lento, tecendo sobre o leitor a teia doce de uma ladainha. Nesse estilo que é forma e fundo ao mesmo tempo, música interior e fluxo sustenido da primeira à última linha, reside a principal singularidade de uma obra que exerce sobre nós o mesmo poder de convicção da melhor poesia. "Leiam-me em voz alta", recomendou Saramago aos seus leitores em mais de uma ocasião; quando seguimos este conselho, a sua literatura atinge essa nitidez solene e quase oracular das palavras que nasceram com vocação de eternidade. Juan Manuel de Prada, "Leiam-me em voz alta", in ABC
DA MATURAÇÃO CRIADORA - Num mundo de peter pans com medo de envelhecer, ele define-se como um escritor tardio, uma uva passa. Ironia. Antes da epifania narrativa de Levantado do Chão (1980) há toda uma exploração sensorial e poética, uma biologia da alma onde se vão afivelando os sentidos externos e internos. O ouvido e a memória, o olhar e a imaginação, o cheiro e a melancolia. É em Levantado do Chão, no solo do Alentejo, que germina este estilo singular... Manuel Rivas, Obrigado Vaticano, in El País
DA MULHER - Na obra de Saramago, em todos os seus romances, a mulher tem um papel relevante, talvez porque no mundo dos pobres a mulher se vê obrigada a cultivar dia a dia as virtudes de um heroísmo anónimo que não lhe é reconhecido. Em todos os romances de Saramago, a protagonista tem mais valor do que o protagonista. Mulheres sonhadoras e realistas, sacrificadas, capazes de um amor que é o que o amor essencialmente deve ser: generoso. A mulher, na casa do pobre, é a consciência aberta da dignidade. Basilio Losada, "Um universo ético", in El Mundo
DA CONDIÇÃO HUMANA - Saramago não apenas renovou a temática do romance português, como as suas técnicas estruturais, para nada dizer do extraordinário estilo literário propriamente dito: é, na linhagem de Malraux (...), o romancista da condição humana. A condição humana vista pelo prisma histórico e sociológico de Portugal. O indivíduo é, nos seus romances, uma parte da engrenagem social, não a personagem idiossincrática que tradicionalmente povoa a ficção. Ele é o homem que faz do homem uma "ideia política" (no sentido aristotélico da palavra), com prolongamentos ideológicos e até partidários. Nesse particular, a sua visão denuncia algum ressentimento irónico contra o mundo tal como existe. Wilson Martins, "Romancista da condição humana", in O Globo
DA HISTÓRIA/ das histórias - E não existe uma única obra em que na versão oficial da história não se tenha infiltrado o subversivo da ficção. Nenhuma em que o juste milieu da história oficiosa de Portugal não tenha sido minado por fábulas. Christian Thomas, "Jangada das ficções", in Frankfurter Rundschau
DOS MESTRES - (...) a obra de Saramago incessantemente "fala" com a de seus antecessores: sua preocupação com a história, num momento no qual cassandras decretam-lhe o fim, remete a um Alexandre Herculano; sua dicção, baseada num tom despiciendo e digressivo, remete à de Almeida Garrett, seu cuidado com a forma do romance, cada vez mais depurada, remete a Eça. Em poucas palavras, Saramago está firmemente ancorado em sua tradição doméstica, da qual é prova o seu longo encantamento com a palavra barroca (...), na qual revelam-se as suas leituras de clássicos como os oradores religiosos António Vieira, Manuel Bernardes e António das Chagas, e ao que se soma a incorporação, tanto em nível de anedota como da escritura mesmo, dos maiores poetas portugueses, Camões e Pessoa. Horácio Costa, "José Saramago é o suco da barbatana da língua portuguesa", in Folha de São Paulo