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Escola Secundária José Saramago - Mafra

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A SOCIABILIDADE DO PORTUGUÊS


Ilustração do livro de James Murphy, Travels in Portugal; through the Provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years 1789 and 1790 (1795).




«(...) O português é o homem mais sociável deste mundo. Fraterniza em casa com quantos estrangeiros lhe apareçam, em África com o gentio, na guerra com o inimigo. Nada mais poético que a écloga café com leite do português em seu bungalow, balouçando-se no rocking-chair, todo de branco como exige a etiqueta do sertão (...). Onde o português chega, há tertúlia; desenvolve-se a afabilidade; alarga-se o halo humano. Esta virtude ou defeito para os Gobineau, ciosos do sangue puro ariano, explica o seu nenhum exclusivismo contra quem quer que seja e sua nenhuma antecipação. Ao contrário do inglês que para toda a parte leva com o cachimbo e o fato sal e pimenta a sua importante e exclusiva senhoria e os pergaminhos de celta, o português leva-se a si, simples como elemento, pronto a todas as permeabilidades, e enaipa com quem o requer e não requer. Essa expressão "é muito dado" existe apenas na nossa língua. Com ela se traduz a despreocupada lhaneza, espírito de comunicabilidade, nenhum preconceito nem timbre na vida das relações. Axioma: de todos os europeus o português é o mais tratável. (...) Não há que discutir: o português é o bicho mais adaptável do universo. Igual pelo menos ao alemão; ainda neste a adaptabilidade é fruto de uma orgânica; no português, obra do instinto. Mas quererá isso dizer falta de carácter?

Com certeza que significa ânimo prazenteiro, justo meio entre a alegria que lhe confere a cançoneta idiota e a vil tristeza que verberava Camões como supino flagelo da alma. Representa ainda o gosto de folgar; tendência para a irradiação; abandono - vá - aos impulsos do bem ou do mal, para o caso pouco importa; efusibilidade; descuido; hábitos de mentidero; sentimento atenuado das responsabilidades; uma certa lassidão perante a vida e uma certa filosofia de lazzerone que se resume em considerar a luta como coisa tonta e vã perante a eternidade. E por cima de tudo, a coroar estes sentimentos, discutíveis, sim, mas que nunca poderão ultrapassar a venialidade sacramental, uma grande simpatia humana.

Sendo o português sociável por excelência, na vida prática, para lá da boa intenção, é o mais inaglutinativo dos viventes. E porquê? Porque associação implica vontade, disciplina, sobretudo esforço a longo prazo, e o português cinca pela ausência ou atenuamento de qualidades que para o alemão ou o belga são a base da vida civil. Mas nesta aversão pelo associativismo o elemento de repulsa não é representado pelo amor da liberdade, seja essa liberdade tomada no sentido, mais centrípeta. É antes rebeldia aos vínculos morais, atonia perante o dever social, impropriedade do seu individualismo para tudo o que tenha carácter colectivo. Fraterno, já dissemos que o era, mas duma fraternidade de casa da malta, impulsiva, sem sanção nem obrigação, toda eventual e caprichosa, pois. E, ó paradoxo, dentro do quadro das razões expostas, é insolidário com o próximo. Neste particular, a História Trágico-Marítima constitui o pior requisitórion que se poderia instaurar contra um povo.

Encarando o problema no seu reverso, tudo, porém, que no âmbito da sociabilidade se afigurava pejorativo assume logo aspecto amplo e generoso. Outro axioma: os portugueses são a gente mais hospitaleira do cosmo. Compraz-se em proclamá-lo o sábio botânico Link que percorreu Portugal de ponta a ponta. Em casa do fidalgo, no presbitério, no palheiro do pobre, o viandante encontrava sempre cama para dormir e pitança consoante as posses do bom samaritano ocasional. E porque assim foi, porque assim sempre devia ter sido, não admira que através do país se não encontrassem estalagens dignas de lordes atormentados pelo spleen. Não havia cá desses albergues sumptuosos, como lá fora à beira das grandes estradas, com um pessoal típico, marmitons, servilhetas, postilhões, e que forneceram os melhores palcos à literatura de capa e espada. A um outro, como esse dos Carvalhos, no caminho do Porto para Lisboa, onde se batia um fandango diabólico segundo a gravurinha de Murphy, não podia faltar o infame percevejo. Em regra, por conseguinte, não havia locandas e as poucas que havia eram piores umas que as outras. (...)»


Aquilino Ribeiro, Os Avós dos Nossos Avós, Lisboa, Bertrand, s/ d, apud Boletim Cultural O Homem Português, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, fevereiro de 1990, pp. 22-23.



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