Pormenor de biombo Nanbam-jin ("bárbaros do sul"), atribuído a Kano Domi, entre 1593 e 1600.
12. redondilhas dos gestos
sôbolos rios que vão
por babilónia me achei
e lá passando encontrei
bronzes, arames, latão,
chumbo, zinco, ouro de lei.
vi chapas, restos de molas,
pedras brancas e cinzentas,
superfícies ferrugentas,
vi pirâmides e bolas,
vi memórias de tormentas,
vi turbinas aos bocados,
vi cilindros, vi motores,
maquinismos recortados,
filamentos delicados,
vi pistões e extintores,
e vi pedras, vi granito,
vi basalto e vi calcário
e pedaços de arenito
já polidos pelo atrito
e metidos num armário.
vi escórias, vi confusa
multidão de coisas tal
que depois se aparafusa.
vi algumas made in usa
e outras made in portugal.
e vi serras, instrumentos,
berbequins, goivas, martelos,
tornos, turqueses, cubelos,
chaves, pregos, acrescentos,
cadeados, tantos elos
de fazer as ligações
nessa estranha babilónia
do real às emoções.
vi o busto de camões
tratado sem cerimónia,
vi a ninfita neptuna
feita de pano e de lã,
era a boneca pagã
encostada a uma coluna,
vi figurinhas namban
e coisinhas de metal,
gigantescas estruturas,
fontes para as águas puras,
brancos seixos do areal
e as argilas, mais escuras.
vi também que cada estria,
no interior de um monumento,
dava à luz geometria.
e vi como se fazia
a invenção do cata-vento.
vi que tudo se aproveita
mesmo o já desnecessário
e ou se entorta ou se endireita,
ou se liga, alarga, estreita,
ao sabor do imaginário.
vi imagens, vi entranhas
feitas de cimento e aço,
e sinais e contra-senhas
a lembrar fernando lanhas,
pablo gargallo, picasso...,
não por algum ser o mestre
para ser citado à pressa,
mas pelo fulgor terrestre
de uma energia rupestre
que a todos os atravessa.
vi alusões literais
e referências, intuitos,
piscadelas e sinais
e achados ocasionais
e os seus curto-circuitos,
vi o fazer como vibra
de ser insatisfação
na feitura fibra a fibra:
arte que desequilibra
no encontrar da solução.
ali vi quanto está só
quem procura e se procura
e dos riscos da aventura
faz seu luto e faz seu dó
porque a forma é sempre impura
e exprime alegrias, medos,
saber, traumas, ansiedade,
e de tudo faz brinquedos
ou dramáticos enredos:
nisso está mesmo a verdade
da ilusão a que ela adira
como a filme em celulóide,
ou das figuras que tira
de ente libido e mentira
sem dar conta ao dr. freud.
sôbolos ferros, os restos,
que em babilónia encontrei,
tudo aqui emaranhei
para perceber os gestos.
foi dos gestos que falei
Vasco Graça Moura, "variações metálicas", Poesia Reunida, vol. 2, Lisboa, Quetzal Editores, 2012, pp. 287-289.