Andrea Mantegna (entre 1495 e 1505), Museu J.Paul Getty, Los Angeles
José Saramago: "A mim o que me surpreende é que, normalmente, não se fale mais de Deus".
Juan Arias, José Saramago, O Amor Possível
Homo viator et juif errant disent que le passage a encore plus de génie que le lieu.
Régis Debray, Dieu, un itinéraire
Homo viator et juif errant disent que le passage a encore plus de génie que le lieu.
Régis Debray, Dieu, un itinéraire
Se estivesse entre nós, José Saramago comemoraria hoje, 16 de Novembro de 2010, 88 anos de vida. Lembramos esta data, comemoramo-la, evocando o seu romance Levantado do Chão e, em particular, porque se trata do aniversário do seu autor, recordamos, a propósito do nascimento da personagem Maria Adelaide, a descrição das três visitas que recebe e as circunstâncias que rodeiam esse episódio.
São conhecidas as diatribes suscitadas pelas tomadas de posição de José Saramago sobre questões polémicas, políticas, sociais e religiosas, envolvendo também a igreja católica, mais recentemente a propósito da publicação do seu romance Caim. No entanto, convém não esquecer que a sua obra está imbuída de referências bíblicas, mostrando, da parte do autor, um conhecimento vasto e aprofundado das Escrituras. Este facto, se, por um lado, lhe permite subverter episódios bíblicos, denunciando aquilo que considera excessos, omissões ou injustiças, por outro, dá-lhe a possibilidade de os utilizar para sacralizar o que é laico, divinizar o que é humano.
É essa transposição que encontramos na visita feita à bebé Maria Adelaide, pelos três "reis magos", João Mau-Tempo, António Mau-Tempo e Manuel Espada, como se em Monte Lavre tivesse (re)nascido aquele, aquela, cujo desígnio seria salvar os seus semelhantes. Na verdade, à medida que avançamos na história, apercebemo-nos de um crescendo, que passa por um episódio de sofrimento atroz, com a descrição da paixão de Germano Vidigal, vítima de tortura, seguido do nascimento de Maria Adelaide e terminando no dia do Apocalipse, da revelação, concentrando nesta personagem a centralidade deste dia "levantado e principal".
Embora referidos em São Mateus ("vieram uns magos do Oriente a Jerusalém", 2-1), os três Reis Magos, Belchior, Gaspar e Baltasar, representam uma tradição posterior aos Evangelhos, no que aos seus nomes, à descrição do seu aspecto e condição social e às oferendas com que presenteiam o Menino diz respeito. José Saramago apoiou-se nesta tradição e também ele, em Levantado do Chão, conduziu até junto de Maria Adelaide três visitantes, o Avô, o Tio e o Pai, acompanhados de presentes, como manda a tradição. O Avô, o mais velho, não oferece ouro, como é devido a um rei e, especialmente, ao Rei Mago Belchior; o presente do Tio não é incenso, como seria de esperar de um jovem rei Gaspar, apresentando-se em reconhecimento da divindade de um recém-nascido; o Pai não oferece mirra, em reconhecimento da humanidade da menina, como o fez Baltasar. Estes "reis magos" trazem flores: uma flor de gerânio que logo é renomeada - assim que a voz narrativa muda o seu referente, deixa de falar do rei e vira-se para João Mau-Tempo, passa a ser a sardinheira o nome que a identifica, designação pouco própria de flor de jardim de palácio real, mas em plena sintonia com o quintal florido de uma casa pobre do qual foi arrancada; a segunda flor é um malmequer - de imediato é chamada bem-me-quer, tendo em vista a presenteada a quem se destina; e a terceira prenda, dupla - duas mãos espalmadas, do Pai, simbolizando duas flores.
O ouro, o incenso e a mirra, presentes de Belchior, Gaspar e Baltasar, representando a realeza, a divindade e a humanidade, são aqui substituídos pela singeleza destes presentes - o gerânio/ sardinheira, o malmequer/ bem-me-quer e ambas as mãos do Pai. Neles não existem laivos de realeza, o carácter sagrado foi-lhes emprestado pelo autor e porventura conceder-lhos-á o leitor. Resta a humanidade - ela perpassa o episódio referido, o romance e a obra do autor.
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