Rembrandt Harmenszoon van Rijn, A Noiva Judia (1658).
Imagem daqui.
Foi um encontro embaraçoso, triste, e não dissemos um ao outro nada de importante. No momento de me ir embora, no entanto, perguntei ao mestre Rembrandt - R., como eu gostava de lhe chamar para abreviar o seu nome tão estranho, tão singular - se já terminara a pintura. Havia algum tempo, queixava-se, as dores nos dedos impediam-no de trabalhar mesmo nas obras de que mais gostava. E, para além disso, a sua vista enfraquecera ainda mais. Contudo, naquela manhã sentou-se ao cavalete, levantou o pano que o cobria e - durante alguns instantes - deixou-me ver a tela que desejava dedicar à memória de Abigail. R. sempre se recusara a falar-me dela. Certa vez confirmara-me apenas que a conhecera nas reuniões dos Colegiantes que tinham lugar na livraria de Rieuwertsz e que, na sua opinião, era um grande artista. Admirava imensamente o seu trabalho e, por conseguinte, pedira-lhe que o deixasse executar três gravuras para a Metamorphosis insectorum Novae Zeelandiae. O tatu, o papa-formigas e a jibóia. Depois, até àquele dia, nunca mais dissera nada, não tornara a tocar no assunto. Nunca me fizera qualquer pergunta a respeito da nossa relação, nunca me perguntara nada. Talvez porque já soubesse tudo.
Na realidade, foi como um relâmpago: mas senti também uma surpresa, uma comoção, uma saudade de cortar o fôlego. Através da sua arte, agora apreciada apenas por um número reduzido de conhecedores, mais uma vez R. dizia aquilo que as palavras não seriam capazes de exprimir. Talvez não tenha tido tempo de formar uma ideia precisa do que vi. Abigail parecia-me diferente de como a conhecera - era a Abigail antes de ficar doente, talvez. Mais roliça, com melhor aspecto. Até mesmo eu parecia - não sei como dizer - mais jovem. Era como se R. nos tivesse transfigurado, mas era também como se nos rostos das duas personagens - no meu rosto e no rosto de Abigail, quero eu dizer - revivessem também os rostos de Titus e de Magdalena, de Saskia e de Hendrickje Stoffels. Todos os rostos das pessoas que R. havia amado, que o amaram, ou que aprendera a amar. Não era apenas o meu rosto, e também não era apenas o rosto de Abigail - ou, pelo menos, as personagens do retrato não eram apenas nós dois. Era como se todos aqueles rostos se tivessem sobreposto, como se se tivessem unido para formar uma visão fantástica, nova, que vivia somente na imaginação de R.
Depois, olhámo-nos demoradamente nos olhos. Por fim, R. sorriu-me e disse-me: - Vedes, doutor Paradies? Está praticamente acabado. - A mim, para dizer a verdade, a pintura parecia-me apenas esboçada (à excepção dos rostos, justamente). Não se tratava dum retrato tradicional, semelhante em sentido naturalista. A pintura estava livre da obrigação de reproduzir a aparência, de descrever fielmente as formas. Era essencial, sem qualquer toque supérfluo. Contudo, é atribuída uma grande importância aos acabamentos, não só pelo tempo e a habilidade que requerem, mas também pelo sentido de perfeição que emana dum trabalho concluído. Mas eu sabia que R., pelo contrário, agora se recusava a avaliar um quadro com base no tempo que o artista empregara a pintá-lo, e numa presumível perfeição que na realidade pretendia apenas imitar a todo o custo a natureza. (...)
Contudo, aquilo que deveras me impressionou foi outra coisa: a cor. Nunca tinha visto nada que lhe comparasse nos quadros dos outros grandes mestres - e não nos esqueçamos de que Amesterdão está cheia deles. Mas nenhum adoptava aquelas cores incandescentes, varioladas, granulosas. Dava quase a ideia de que R. usava aquelas cores para ofuscar o mundo. Perguntei-me com que instrumentos teria aplicado na tela. Com o pincel? Diria que não. Com uma espátula? Tão-pouco. Com os dedos mergulhados no pigmento? Não sou especialista e, para além disso, tive aquela imagem à minha frente apenas durante alguns segundos: mas em alguns pontos a superfície da cor parecia-me mesmo arranhada ou esfolada. Noutros, a cor surgia cravada de grânulos, encrustados como lama. Noutro ainda, era como se estivesse queimada. Ou então esburacada e golpeada. Espalmada, borrifada, martelada. Viam-se verdadeiras excrescências de cor - a pintura projetava-se alguns centímetros para fora do quadro, parecia viver uma vida própria. (...)
- Já que uma obra não pode ser perfeita, então talvez seja melhor que permaneça inacabada (...).
Luigi Guarnieri, A História Secreta da Noiva Judia, Editorial Presença, Lisboa, 2006, pp. 202-204.
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