Agustina Bessa-Luís.
Imagem daqui.
AS MINHAS PALAVRAS
Um escritor é um pastor de palavras. Assim como o pastor de ovelhas as guarda para o caso de se perderem ou serem devoradas pelos lobos, também o escritor toma conta do seu dicionário, tanto académico como popular.
Conta-se que um dia Gabriele d'Annunzio, em Paris e em conversa com Anatole France, lhe disse: «Vocês, os grandes escritores, não se servem senão de cinco mil palavras, e há quarenta mil na vossa língua. Que fazem das outras trinta e cinco mil?» Anatole France não soube que responder.
Ora nós, os portugueses, temos três vezes mais vocábulos do que a França. Uma cultura muito antiga, composta de inúmeras ocasiões de transumância, de movimentos invasores e períodos de recreação e prazer provocou esse enorme registo de palavras que, como traço de convivência, sentido prático, por hábito ou afeição poética, foram compondo uma língua e enriquecendo um património escrito e oral. (...)
A semente da rebeldia que todo o escritor semeia na roda dos seus afectos e conspirações é sempre orientada no sentido do sol, ou seja, da criação e do fruto adequado tanto à subsistência como à transcendência do homem. É ao escritor, uma minoria que parecia fútil se não fosse inqualificável, que cabe esse trabalho. (...)
O escritor é um curandeiro da desolação. Umas vezes diverte, outras vezes promete, quase sempre socorre o coração da terra para que ele tenha direito à eternidade. E a eternidade, o que não tem limites, parece ser hoje uma caça cruel, feita de actos cruéis e extravagantes. E de palavras usadas. Temos que recorrer às outras, desconhecidas, que nos arcanos do tempo esperam a sua libertação.
Agustina Bessa-Luís, Revista Factos, Dafundo, nº 12, Opinião, 9 de junho de 1998, p. 98, in Ensaios e Artigos (1951-2007), vol. III, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2017, pp. 2398-2400.
Sem comentários:
Enviar um comentário