Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1913 - 9 de julho de 1980) publicou o seu primeiro livro de poemas no ano em que terminou o curso de Direito. Conhecido em Portugal como um dos "monstros" sagrados da música brasileira, em parceria com Tom Jobim, conheceria o seu maior sucesso com Garota de Ipanema, em 1963. Contudo, além da poesia, Vinicius de Moraes cultivou a prosa - escreveu crónicas e críticas de cinema, reportagens poéticas e drama.
A crónica que se apresenta foi publicada no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, em 15-16 de Junho de 1969. Volvidos quase quarenta e três anos, o texto continua atual, pelo menos no espírito. Nele já se encontra uma referência ao português, língua, aparecendo Vinicius de Moraes como defensor de uma reforma ortográfica. Nele ainda se apresenta o português, homem, em terras brasileiras, servindo de mote às anedotas. Mas o texto é, essencialmente, um panegírico a Portugal e às suas gentes que, dizia o autor em 1969, "apenas desconhecem que têm inteligência". Quando (re)conhecerem que a têm, talvez o slogan publicitário de uma cadeia de pastelarias de São Paulo deixe de ser "O doce é português, o preço é uma piada!" para passar a ser outra coisa. De todas as formas, obrigada, Vinicius de Moraes, por tantos elogios.
OBRIGADO, PORTUGAL!
A gentileza humana parece ter feito seu último reduto em Portugal. E quando eu falo em gentileza, dou-lhe quase a acepção medieval de amor cortês, de medida, de mesura. É um povo que não levanta a voz, e ninguém pense que por covardia, mas por uma boa educação instintiva e um senso de afetividade. Essa desagradável invenção moderna, o berro, não encontra forma vocal na garganta de um português. Hitler, Mussolini ou Lyndon Johnson jamais poderiam governar esse "jardim d'Europa à beira-mar plantado", onde se fala baixo, ama-se com fervor e chora-se nas despedidas.
Essa tristeza, de que nós brasileiros somos os novos legatários, tem uma ancestralidade que vem de muitas dominações, muita submissão forçada, muito fatalismo histórico e geográfico. Povo afeito às guerras - ainda hoje as mantém no Ultramar - parece ele sofrer de um silencioso heroísmo na paz, como se a Desgraça, essa invisível espada de Dâmocles lenta e diariamente forjada pelo Destino, pudesse a qualquer momento cair-lhe sobre a cabeça. Quase humilde no trato pessoal, logo verificará quem o conhecer melhor que não se trata de servilismo, e sim de uma necessidade de não fazer vibrar além do necessário os frágeis fios que suspendem imanentemente os Maus Fados sobre sua existência. E é talvez por esse motivo que seus bons fados também são tristes, sempre a carpir as penas do viver e do amar.
Isto é tão mais curioso quanto, apesar de pobre e sudesenvolvido em sua grande maioria, o português é um povo saudável e de bom aspecto, com boa pele e dentes magníficos, bem certo fruto de uma alimentação mais adequada: nada como o brasileiro menos aquinhoado das regiões pobres do país, no geral malsão e banguela, além de irónico e desconfiado por mecanismo de descrença e autodefesa. A propalada "burrice" do português simples e iletrado nada mais é que uma forma sadia e vegetativa de ser (ou não ser, como queiram). Foi minha mulher quem matou a charada: "Eles não são burros", disse-me ela. "Eles apenas desconhecem que têm inteligência." E a decantada "esperteza" ou "inventiva" do pária brasileiro nada mais é que o antivírus da forma crónica da ignorância e indigência em que vive, tendo que se virar mesmo de fato para não juntar os calcanhares. O pária brasileiro tem que lutar não só contra os indesejáveis cromossomas da desnutrição; a dor de dentes endémica e a cachaça de má qualidade, até um tipo de ensino - e isso quando é muito afortunado - em que lhe baralham a cabeça com uma língua cheia de preconceitos semânticos e acentos desnecessários - isso porque há decénios os cartolas da linguística nas duas pátrias teimam em não simplificá-la, quem sabe para justificar a continuidade de seus jetons e sua dolce vita académica.
Eu confesso que depois desta minha última viagem, e de um contato intermitente de três meses com sua gente, Portugal seria o único país da Europa onde eu poderia viver fora do Brasil: com eventuais incursões à Itália. Que adiantam o superdesenvolvimento e a kultura (assim mesmo com k) de um povo, como dois ou três que eu conheço, se neles a relação humana torna-se cada dia mais difícil e indesejável diante de um outro tipo de ignorância bem mais perigoso a longo prazo, como esse da reserva e falta de diálogo; da submissão a preconceitos económicos falsos na verdadeira escala de valores; do aburguesamento progressivo e da mesmificação do mais pessoal dos meios de comunicação, que é a linguagem? Que qualidade é mais a prezar no ser humano, se não for a gentileza, o gosto de conviver, a boa vontade em cooperar, em socorrer, em dar-se um pouco em tudo o que se faz, desde trabalhar a amar, desde comer a cantar, desde criar no plano intelectual a fazer no plano industrial ou agrícola?
Obrigado, Portugal! No contato de tuas gentes, teus escritores e teus artistas, teus estudantes e teus simples - teu povinho das brancas aldeias! - eu senti que há ainda muito isso que cada dia mais falta ao mundo: carinho e sinceridade. Represados, talvez, mas latentes como o sangue sob a pele, e prontos a romper a crosta criada a duras penas, ao longo de um passado tão cheio de sacrifícios e infortúnios.
Obrigado, Lisboa, terra tão boa, gente tão gente, casas tão casas, amigos tão como já não se encontra. Obrigado, Coimbra que me recebeste em tua Academia e em teu Convívio e que me puseste uma velha capa sobre os ombros. Obrigado, Porto, onde teus estudantes quiseram não me deixar trabalhar em boate, porque não sabem ainda que a poesia e a canção têm de estar em toda parte (mas obrigado pelo gesto, estudantes do Porto!). Obrigado, Óbidos, que pareces feita no céu, tão linda e pura como uma avozinha menina que ainda usasse flores silvestres na cabeça. Obrigado, Évora, mãe alentejana de Ouro Preto, cidade onde mais que nenhuma outra se sente o Brasil colonial, o Brasil do Aleijadinho, cidade perfeita de gentil austeridade. Obrigado, Monserraz, que, esta não quero ver nunca mais porque se a ela voltar nela hei de ficar, entre seus muros brancos e seus homens e mulheres do mais franco olhar. Obrigado, Portugal. Resta sempre uma esperança. Eu voltarei.