Rede de afluentes do rio Ohio (à esquerda, a azul). | Taylor Perron, MIT
“(…) Tereis
ouvido bem? Terei eu realmente afirmado que este presente que somos poderia e
deveria explicar o passado que outros foram, que o hoje poderia e deveria, para
usar esta expressão coloquial, pôr o ontem no seu lugar? Assim é, e agora
apenas será necessário demonstrá-lo, para o que me socorrerei da ajuda de um
modestíssimo professor de História chamado Tertuliano Máximo Afonso, personagem
de um romance saído ao público há poucos dias e do qual sou autor.
Defende o
dito professor a arriscada ideia de que o ensino da História não se deveria
fazer de trás para diante, isto é, do mais antigo para o mais recente, mas sim
de diante para trás, isto é, (…) começar por estudar profundamente a galinha a
fim de se poder chegar a uma melhor compreensão das propriedades reprodutivas
do ovo. Convidado a expor esta nada canónica teoria, eis como ele a
desenvolveu: «Falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só
repetir, papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos
exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a
cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias do ano ao mesmo tempo
que se vai navegando pelo rio da História acima até às origens, ou lá perto,
esforçar-nos por entender cada vez melhor a cadeia de acontecimentos que nos
trouxe aonde estamos agora, isso é outro cantar, dá muito trabalho, exige
constância na aplicação, há que manter sempre a corda tensa, sem quebra». Noutra
passagem do romance, esta velha e banal alegoria do rio da História
enriquece-se com uma novidade de tomo ao chamar-se a atenção para a importância
dos pequenos e médios cursos de água que afluem ao rio principal, esses sem os
quais a rede hidrográfica da História não passaria de um estagnado e apodrecido
pântano. O que o meu professor de História pretendia expressar, com estes
aparentemente gratuitos jogos de água, é que, sendo verdade que o passado nos
fornece, como é sua obrigação, inúmeras chaves indispensáveis à compreensão do
presente, não menos verdade é, porém, que o estudo do presente aplicado à
História, também a antiga, mas principalmente a recente, lançaria novas luzes
sobre sucessos que aos observadores e testemunhas coetâneos deviam ter parecido
unívocos, encerrados e limitados no seu próprio acontecer, e, sobretudo,
inocentes de outras consequências além das imediatas, sem ir mais longe nas
previsões que a linha do horizonte visível. (…)
Imaginemos
então que o meu personagem Tertuliano Máximo Afonso é professor de História
nesta Universidade e que, com a necessária aprovação superior, vai pôr em
prática, aqui, o seu revolucionário projecto. Na sua classe há estudantes de
diversas nacionalidades – alemães, franceses, espanhóis, ingleses, belgas,
holandeses, polacos, búlgaros, canadianos, gregos, norte-americanos, suecos,
austríacos, japoneses, sul-africanos, e até mesmo, quem sabe, algum português –,
todos eles empenhados em conhecer a história de Itália e a cultura italiana. Escusado
será dizer que Tertuliano Máximo Afonso satisfará escrupulosamente o interesse
dos seus alunos, mas, invertendo a ampulheta da História, principiará por
traçar o panorama da situação política, económica, social e cultural da Itália
de hoje, e daí avançará para o passado, mas sempre, e isso não será o menos
importante, detendo-se na análise do como e do porquê de cada caso concreto, de modo a que os
encadeamentos, os nexos, as ligações de tudo com tudo fiquem claramente
inscritos na memória e no espírito dos seus estudantes. Um trabalho de
Hércules, direis. Assim é, de facto, mas Tertuliano Máximo Afonso irá querer
muito mais. Dirá aos seus alunos: «Agora é a vossa vez, que cada um de vós, na
medida dos conhecimentos que haja adquirido, faça, em relação ao país donde é
natural, o mesmo trabalho que eu fiz aqui em relação a Itália, que seja cada um
de vós, ao mesmo tempo, mestre dos seus condiscípulos e mestre meu, e que,
depois de terdes aprendido comigo, possamos começar agora a aprender todos com
todos». Não é difícil prognosticar que a aula do professor Tertuliano Máximo
Afonso se transformaria num vulcão de entusiasmo… Utopia, direis. Assim é, de
facto, mas, se a ideia é absurda e portanto impraticável, então que se inventem
e apliquem outras que sejam igualmente criadoras de memória, ideias que nos
salvem do «buraco negro» de esquecimento que todos os dias, mais e mais, nos
vai engolindo (…). Sem Zeus, nem Hera, nem Héracles, atrevo-me a pensar que na
aula do professor Tertuliano Máximo Afonso se passaria algo como a aparição
igualmente resplandecente de uma nova Via Láctea, mas nessa nenhum «buraco
negro» ameaçaria… Se ao outro não vamos poder escapar, ao menos que não façamos
este por nossas próprias mãos. Tenho dito.”
José Saramago, Esquecimento: O «Buraco Negro» da Galáxia
Humana, Siena, Università per Stranieri di Siena, Facoltà di Lingua e
Cultura Italiana, Lectio Doctoralis per la Laurea Honoris Causa in Lingua e
Cultura Italiana, 21 de novembro de 2002.
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