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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 8 de maio de 2013

OS CURSOS DE ÁGUA DA HISTÓRIA

Rede de afluentes do rio Ohio (à esquerda, a azul). | Taylor Perron, MIT
Imagem daqui.



“(…) Tereis ouvido bem? Terei eu realmente afirmado que este presente que somos poderia e deveria explicar o passado que outros foram, que o hoje poderia e deveria, para usar esta expressão coloquial, pôr o ontem no seu lugar? Assim é, e agora apenas será necessário demonstrá-lo, para o que me socorrerei da ajuda de um modestíssimo professor de História chamado Tertuliano Máximo Afonso, personagem de um romance saído ao público há poucos dias e do qual sou autor.

Defende o dito professor a arriscada ideia de que o ensino da História não se deveria fazer de trás para diante, isto é, do mais antigo para o mais recente, mas sim de diante para trás, isto é, (…) começar por estudar profundamente a galinha a fim de se poder chegar a uma melhor compreensão das propriedades reprodutivas do ovo. Convidado a expor esta nada canónica teoria, eis como ele a desenvolveu: «Falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se vai navegando pelo rio da História acima até às origens, ou lá perto, esforçar-nos por entender cada vez melhor a cadeia de acontecimentos que nos trouxe aonde estamos agora, isso é outro cantar, dá muito trabalho, exige constância na aplicação, há que manter sempre a corda tensa, sem quebra». Noutra passagem do romance, esta velha e banal alegoria do rio da História enriquece-se com uma novidade de tomo ao chamar-se a atenção para a importância dos pequenos e médios cursos de água que afluem ao rio principal, esses sem os quais a rede hidrográfica da História não passaria de um estagnado e apodrecido pântano. O que o meu professor de História pretendia expressar, com estes aparentemente gratuitos jogos de água, é que, sendo verdade que o passado nos fornece, como é sua obrigação, inúmeras chaves indispensáveis à compreensão do presente, não menos verdade é, porém, que o estudo do presente aplicado à História, também a antiga, mas principalmente a recente, lançaria novas luzes sobre sucessos que aos observadores e testemunhas coetâneos deviam ter parecido unívocos, encerrados e limitados no seu próprio acontecer, e, sobretudo, inocentes de outras consequências além das imediatas, sem ir mais longe nas previsões que a linha do horizonte visível. (…)

Imaginemos então que o meu personagem Tertuliano Máximo Afonso é professor de História nesta Universidade e que, com a necessária aprovação superior, vai pôr em prática, aqui, o seu revolucionário projecto. Na sua classe há estudantes de diversas nacionalidades – alemães, franceses, espanhóis, ingleses, belgas, holandeses, polacos, búlgaros, canadianos, gregos, norte-americanos, suecos, austríacos, japoneses, sul-africanos, e até mesmo, quem sabe, algum português –, todos eles empenhados em conhecer a história de Itália e a cultura italiana. Escusado será dizer que Tertuliano Máximo Afonso satisfará escrupulosamente o interesse dos seus alunos, mas, invertendo a ampulheta da História, principiará por traçar o panorama da situação política, económica, social e cultural da Itália de hoje, e daí avançará para o passado, mas sempre, e isso não será o menos importante, detendo-se na análise do como e do porquê de cada caso concreto, de modo a que os encadeamentos, os nexos, as ligações de tudo com tudo fiquem claramente inscritos na memória e no espírito dos seus estudantes. Um trabalho de Hércules, direis. Assim é, de facto, mas Tertuliano Máximo Afonso irá querer muito mais. Dirá aos seus alunos: «Agora é a vossa vez, que cada um de vós, na medida dos conhecimentos que haja adquirido, faça, em relação ao país donde é natural, o mesmo trabalho que eu fiz aqui em relação a Itália, que seja cada um de vós, ao mesmo tempo, mestre dos seus condiscípulos e mestre meu, e que, depois de terdes aprendido comigo, possamos começar agora a aprender todos com todos». Não é difícil prognosticar que a aula do professor Tertuliano Máximo Afonso se transformaria num vulcão de entusiasmo… Utopia, direis. Assim é, de facto, mas, se a ideia é absurda e portanto impraticável, então que se inventem e apliquem outras que sejam igualmente criadoras de memória, ideias que nos salvem do «buraco negro» de esquecimento que todos os dias, mais e mais, nos vai engolindo (…). Sem Zeus, nem Hera, nem Héracles, atrevo-me a pensar que na aula do professor Tertuliano Máximo Afonso se passaria algo como a aparição igualmente resplandecente de uma nova Via Láctea, mas nessa nenhum «buraco negro» ameaçaria… Se ao outro não vamos poder escapar, ao menos que não façamos este por nossas próprias mãos. Tenho dito.”

José Saramago, Esquecimento: O «Buraco Negro» da Galáxia Humana, Siena, Università per Stranieri di Siena, Facoltà di Lingua e Cultura Italiana, Lectio Doctoralis per la Laurea Honoris Causa in Lingua e Cultura Italiana, 21 de novembro de 2002.

 

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