Painel de pedra do Palácio de Senaquerib (cerca de 700-681 a.C.)
Imagem daqui.
A
situação na Europa (…) nunca deixou de ser medonha. Tem-no sido
melancolicamente e apaixonadamente todo este século. Foi-o durante todo o
século XVIII, através de mais indiferença e de uma maior doçura de vida. Tem-no
sido em todos os séculos, desde que os Árias aqui chegaram, cantando os Vedas e
empurrando os seus rebanhos para oeste. A «crise» é a condição quase regular da
Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando os
olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo,
mesmo o que é imperecível – a virtude e o espírito. Já o velho cronista
medieval murmurava com infinita desconsolação: – «Tudo se desconjunta, e mesmo
entre os homens se vai embotando a ponta da sagacidade.» Já o mais velho poeta
clássico, o comedido e satisfeito Horácio, cantara tristemente, quando sobre o
Mundo começava a espalhar-se a imensa majestade da paz romana: – «Tudo se
afunda, e, mais que nenhum outro, este tempo é fecundo em misérias.»
Naturalmente
não se queixava de deficits ou de
crises industriais, mas daquilo que então mais preocupava os homens cultos – o enfraquecimento
da virtude, da moral, da religião, do patriotismo, da segurança pública. E gemidos
iguais ouviríamos percorrendo os anais, os poemas e os textos – até aqueles que
são pintados a cores vivas nos pilones de Tebas, ou gravados a fogo lento nos
tijolos assírios do palácio de Senaquerib.
Mas
o que são no fundo estes lamentos? São apenas, num tom mais solene e amplo,
aquele queixume familiar que cada ano redizemos, quando as folhas caem e os
céus se recobrem de névoas: – «Aí vem o Inverno e a noite!»
É
que a sociedade assemelha-se à Natureza. E na Europa, como em qualquer espesso
bosque, num fundo de vale, um momento vem em que tudo decai e fenece: – os
ramos secam e racham, os mais altos carvalhos tombam de velhice, mil podridões
fermentam, o solo desaparece sob os destroços, a obscuridade aterra, um longo
soluço passa no vento. E, a quem então o atravesse, o bosque afigura-se na
verdade coisa confusa, arruinada e medonha. E, todavia, tudo isso – é simplesmente
Dezembro. É a vida; é a ordem. Das ramagens apodrecidas já se estão nutrindo as
sementes que hão-se ser árvores: e através das decomposições conserva-se a
seiva, que tudo fará reflorir e reverdecer, quando Março chegar. Ora estes
tempos que vamos atravessando são o Outubro fusco que anuncia um dos grandes
Dezembros do mundo. (…)
Somente
as folhagens novas de Março não ressurgem mais verdes nem mais duradouras, por
terem recolhido a seiva das camadas de folhas caídas; na Natureza a força não
tem um fim, não leva a nada de melhor; e não sendo moral, nem imoral, a
Natureza não recua, nem progride. As árvores que nos cobrem não são mais
frescas, nem mais frondosas que as que davam sombra aos homens do Lácio: e a
geada, o vento leste, a poeira não nos incomodam menos do que no tempo das «Geórgicas».
Verdade
seja, também o homem não melhora nem se aperfeiçoa no que lhe é inato.
Não
possuímos hoje, decerto, mais força nos músculos do que os soldados da invasão
persa, mais beleza nas linhas do que os modelos da estatuária grega; não nos
podemos também gabar de mais coragem que Leónidas, de mais génio que Platão, de
mais poesia que Virgílio, de mais virtude que Marco Aurélio. Mas o conjunto dos
homens, a sociedade, progride cada dia pela sucessiva acumulação do esforço, do
trabalho, da virtude, do génio, da poesia, da coragem de cada geração que
passa. E se realmente não pensamos mais profundamente do que em Atenas, sob os
plátanos da Academia, nem combatemos mais heroicamente do que no desfiladeiro
das Termópilas – temos decerto repartido entre nós mais justiça do que no tempo
dos Gracos, e há mais saber divulgado entre nós do que no tempo de Aristóteles.
E nesse século XX, de que já nos ocupamos com tão paternal solicitude, haverá
ainda mais saber espalhado, e haverá mais justiça realizada.
De
sorte que os males presentes, as crises, as misérias, não são mais que o
natural deperecimento de Dezembro na floresta humana, donde surgirá uma mais
viva, mais rica vegetação de liberdades e de noções.
Essas
mesmas, por seu turno, criarão dificuldades novas na sociedade e incertezas
novas no espírito. Outra vez voltará Dezembro.
(…)
Mas quando Março por sua vez voltar, e se vir mais claro num céu mais limpo,
reconhecer-se-á que, em suma, a humanidade deu outro passo decidido para a
frente, no caminho da justiça e no caminho do saber. (…)
Eça de Queiroz, “A Europa”, artigo publicado na Gazeta de Notícias, 2 de abril de 1888,
in Notas Contemporâneas, fixação de
texto e notas de Helena Cidade Moura, Lisboa, Edição Livros do Brasil, s/d, pp.
149-152.
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