Marc Chagall, Le jongleur (1943
"(...) É-se grande poeta porque se é grande poeta, e não porque «courage» rima com «rage» ou «son» com «saucisson».
Se, ao desenvolver um poema que tem metro ou rima, a minha ideia pedir a palavra «amor», mas o metro ou a rima exigirem as sílabas ou o som que pode ser preenchido só pela palavra «afecto», adentro da possível ou plausível sinonímia, não é senão humano que eu empregue a palavra «afecto», dando o caso por fechado nesse particular. Mas o segmento do poema será atacado pela circunstância de que a palavra «afecto» contém implícitas que não contém a palavra «amor», e, insensivelmente, quase sem dar por isso, ou até sem dar por isso, o seguimento do poema sofrerá um desvio, porque a minha própria ideia sofreu.
Admitida mesmo a artificialidade de toda a poesia, ninguém há que não reconheça que temos aqui artificialidade a mais. Que quem sente deveras não fala em verso, nem mesmo em prosa, mas em grito ou acto, é verdade; mas que quem sente um pouco menos deveras, e pode portanto falar em verso, tenha, ainda por cima, que falar em verso dos outros - porque outra coisa não é o metro e a rima do que uma imposição alheia -, isso é menos que verdade, isso, organicamente, não é nada.
Sei bem que a própria palavra é uma instituição dos outros, mas a substância da vida é a assimilação, isto é, a conversão do que é outro em nosso. E quanto mais nosso tornarmos o que é dos outros, mais vivemos. Para tornarmos mais nosso o que é dos outros, é preciso que ele, inicialmente, seja o menos possível dos outros já, para que mais facilmente seja nosso. A força da alma humana não é tal, que trabalhe seguramente através de grandes dificuldades. Napoleão disse que não conhecia a palavra impossível, mas deve tê-la encontrado em Moscovo e Waterloo, se a não tinha visto antes. Depois, deve ter ficado a conhecer a palavra, em toda a sua expressão maligna.
Disse Goethe que «trabalhar dentro de limites revela o mestre». Revela, mas o mestre no sentido do jongleur de possibilidades, do artista de circo da inteligência superior. Dar uma cambalhota em que o corpo passe através de um arco de papel, revela o mestre no sentido de Goethe, porque o arco de papel é um limite, mas, na vida, e na arte que é a vida, não há limites dessa ordem. O limite que temos é a nossa própria personalidade; é o sermos nós e não a vida inteira. É isso o limite dentro do qual temos que trabalhar, porque não podemos trabalhar fora dele. E, para limite, basta esse."
Fernando Pessoa, Poesias Completas de Alberto Caeiro, recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha, Lisboa, Presença, 1994, p. 271.
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