Imagem daqui.
«OS ABNEGADOS
Há uma página de Os Maias que não consigo esquecer. Imaginem um ministro de Educação que não tinha cara, só tinha testa. Nem um mísero e escasso fio de cabelo. Tamanha testa foi o seu destino e sua glória. Ele não precisava ciciar uma palavra, ou desdenhar um gesto, ou piscar um olho. A testa bastava e repito: - a testa era a evidência mesma do gênio.
Uma noite, está o nosso ministro numa recepção. Cercado de damas e cavalheiros por todos os lados. E, súbito, alguém fala na Inglaterra. S. Ex.ª achou bonito o nome, o som. Inglaterra. E vira-se, então, para o Ega, que estava a dois passos. Pergunta-lhe: - "Sabe se, na Inglaterra, há folhetinistas de pulso, como aqui? Talentos como os nossos?" Primeiro, o Ega tem uma vertigem diante da testa inaudita. Em seguida, informa: - "Lá não há literatura." Diz então o ministro: - "Logo vi. Povo prático, essencialmente prático."
Eis o que eu queria dizer: - sou um pouco essa admirável testa de Os Maias. Em criança, só li folhetim. E ainda hoje, tanto tempo depois, ainda preservo a nostalgia dos Sue, dos Perez Scrich, dos Dumas pai, dos Ponson Du Terrail. Outro dia, vou a uma festinha em casa de um amigo. E, de repente, vem a dona de casa, com um pratinho. Pergunta: - "Aceita rocambole?" Esse nome arremessou-me no passado profundo. "Rocambole" era o nome de um herói de Ponson Du Terrail e título também do próprio folhetim. Disse, radiante: - "Pois não, pois não." E os dois ficaram justapostos na minha memória: - o personagem e o doce, o folhetim e o prato. (...)»
Nelson Rodrigues, O Homem Fatal, Lisboa, Espólio de Nelson Falcão Rodrigues e Edições tinta-da-china, 2016, pp. 227-228.
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