Imagem daqui.
«Aqueles passeios a Sintra tinham sido sempre o meu regalo. Amava as hortas, as praias, os toiros, o futebol: mas sempre que me apetecia fugir deste simulacro de Inferno aberto em Céu - Sintra comigo. Por lá andava todo o santo dia, de chapéu na mão, assobio na boca, a boa sombra, Seteais, as fontes, almoço no Lawrence (ou no Pombinha, conforme o orçamento), depois os Capuchos, as ruínas, a Pena... Cheguei mesmo a dormir uma noite, sozinho, nas ameias do Castelo dos Mouros. Foi no Verão, não há memória dum Agosto assim tão quente. A coisa mais extraordinária, nunca o hei-de esquecer, foi que o Sol se pôs no mesmo instante em que a Lua rompeu, e vinha cheia! Um espectáculo como nunca vi outro, nem sol da meia-noite, nem auroras boreais. Eram dois sóis, qual deles o maior, qual o mais vermelho, suspensos no horizonte, em lados opostos do mundo. Parecia uma alucinação ou um caso de espelhismo natural. Durante instantes tive a ilusão dum "fenómeno" ou cataclismo: o universo parava, e ficava retido entre aqueles dois bugalhos enormes de luz vermelha e baça... Depois o Sol afundou-se, e a Lua subiu, empalideceu, esfriou, fez-se uma lua de balada à Soares de Passos. Enfim, lá fiquei essa noite, e por sinal que me fartei de bater os queixos com frio, sem sobretudo, no Agosto mais quente de que rezam as lendas encantadas.
(...)
Chegado a Sintra, desentorpeci as pernas andando até à vila. O que sempre me atraía ali eram sobretudo as verduras, as sombras, as fontes, a paisagem, a altitude. Postado agora na arcaria ogival do Palácio Real, olhei o alto da Pena, e quis ter asas para galgar os penhascos, roçar os cimos do arvoredo, ir poisar naquelas torres e ameias dignas do Walt Disney. Mas, com franqueza, nem asas, nem pernas. Vista cá de baixo, da vila, a Pena pareceu-me um caso de respeito, ninho de águias, rochedo mitológico, amontoado de ciclopes exasperados, de garras crispadas, a agatanhar o céu. Como é que eu pude trepar aquilo a pé, depois da caminhada desde Lisboa, como cheguei a fazer? E o que me atraía agora lá acima, que memória, que enamorado pensamento, que secreto desejo, anseio de galgar o hiato do tempo, desgarradora saudade ou largueza de vistas? Porque era ali que a vontade me estava chamando. (...)»
José Rodrigues Miguéis, "Regresso à Cúpula da Pena", in Léah e Outras Histórias, Círculo de Leitores, 1973, pp. 110-111.
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