«Era um homem de pequeno carácter e pequenas letras, mas que lhe davam para ensinar qualquer coisa como geografia e história num internato de província; desses que estão eternamente deficitários e que parecem conventos escalavrados, com dormitórios como celeiros e arrecadações tenebrosas onde se empichavam os baús dos estudantes com reservas de mantimentos, marmelada e paios ou bolacha torrada.
O professor Jeremias envelhecera e despertara paixões nas irmãs dos seus alunos, que os visitavam levando-lhes encomendas de casa. Já um pouco obeso e acobardado pelo que ele dizia ser a modéstia horaciana - uma preguiça doce e que convidava a confidências -, ainda era belo, triste como um mártir e de olhos cheios de entendimento poético. Na realidade, nunca fizera versos e mantinha, diante das suas ninfas enamoradas, uma atitude mais do que platónica, verdadeiramente digna de Abélard em desgraça. Quando se começaram a mover montanhas lá para os sítios do nordeste e se descobriu que havia muito que fazer, escolas, geradores eléctricos e campos de beterraba, Manuel Jeremias foi designado para dirigir uma espécie de academia agrícola nos arredores da cidade. Era ele e outros. Todos possuíam de reserva um lote de ideias caseiras e gesticulantes. Mas o dinheiro era pouco e deu para comprar dois pares de coelhos gigante-espanhol e uma novilha que tivera o seu surgimento num presépio de freiras e que se lhes tornara tão dispendiosa como um refém do Grande Turco. A quinta-modelo tinha uns caminhos bordados de oliveiras que davam gosto. O professor Jeremias achava que tanto caloiros como finalistas, enquanto viajavam por ela, aprendiam da natureza lições magistrais. (...)
Tinha por hábito confessar coisas um pouco insólitas - o que o fazia parecer inteligente. Escrevera um livro de mineralogia, atribuía ao subsolo da região riquezas prodigiosas - oiro, cobre, urânio. Sem que compreendessem nada, isto alimentava a fantasia das pessoas, que se traduzia em gratidão. "Um dia vamos ficar todos ricos", pensavam. Atribuíam ao professor ser inclinado a manias, mas no fundo não o censuravam; preferiam acreditar que era um sábio, um salvador sem sorte da pobre condição humana.»
Agustina Bessa-Luís, Crónica do Cruzado Osb.,Lisboa, Babel, 2015, pp. 9-10.
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