Casa de Camilo Castelo Branco, São Miguel de Ceide.
Imagem daqui.
«Onde está São Miguel de Ceide? Há aqui umas tabuletas generosas que apontam a direção, mas depois, de estrada em estrada, reduz-se o nome, escamoteia-se a seta, e vem a acontecer o ridículo de passar o viajante ao lado da casa que foi de Camilo Castelo Branco e não a ver. Três quilómetros adiante, num cruzamento enigmático, vai perguntar a um homem que ali está, talvez para caridosamente ajudar os viajantes perdidos, e ele diz: "Fica lá para trás. É ali num largo, onde está a igreja e o cemitério." Emenda o viajante os passos, corrido de vergonha, e enfim dá com a casa. São horas de almoço, o guia está no seu descanso, e o viajante tem de esperar. Enquanto espera, anda por ali passeando, espreita pelo portão, foi aqui que viveu e morreu Camilo Castelo Branco. O viajante sabe que a verdadeira casa ardeu em 1915, que esta é tão postiça como os merlões do Castelo de Guimarães mas espera que lá dentro alguma coisa o comova tanto como o chão natural que as muralhas rodeiam. O viajante é um homem muito agarrado à esperança.
Aí vem o guarda. "Boas tardes", diz um. "Boas tardes", responde outro. "Queria ver a casa, se faz favor." "Ora essa." Abre-se o portão e o viajante entra. Camilo esteve neste lugar. As árvores nem eram estas, nem as plantas, nem provavelmente o empedrado do chão. Está ali a acácia do Jorge, rente ao lanço de escadas, e essa é autêntica. O viajante sobe, o guarda vai dizendo coisas já conhecidas, e agora abre-se a porta do andar. O viajante compreende que não haverá milagres. A atmosfera é baça, os móveis e os objetos, por mais verdadeiros que sejam, trazem a marca doutros lugares por onde passaram e ao regressarem vêm estranhos, não reconhecem estas paredes nem elas os conhecem a eles. Quando a casa ardeu, só aqui estavam um retrato de Camilo e o sofá onde ele morreu. Ambos foram salvos. Pode portanto o viajante olhar o sofá e ver nele sentado Camilo Castelo Branco. E é também certo que o recheio destas pequenas salas, os objetos, os autógrafos, os quadros que estão na parede, tudo isto, ou pertenceu de facto a Camilo ou há forte presunção. Sendo assim, donde vem a amarga melancolia que invade o viajante? Será do ambiente pesado, do invisível mofo que parece cobrir tudo. Será da vida trágica que aqui dentro se viveu. Será o desconsolo das vidas falhadas, mesmo quando de gloriosas obras. Será isto, ou aquilo, ou aqueloutro. Nesta cama dormiu Camilo, aqui escrevia. Porém, onde está Camilo? Em S. João de Gatão, o fojo de Teixeira de Pascoaes é uma coisa quase assustadora que Camilo teria merecido. Ceide é um interior burguês oitocentista da Rua de Santa Catarina, do Porto, ou da Rua dos Fanqueiros, de Lisboa. Ceide é muito mais a casa de Ana Plácido, quase nada a de Camilo. Ceide não comove, entristece. Talvez por isso o viajante começa a sentir que é tempo de ver o mar.
José Saramago, Viagem a Portugal, Porto, Fundação José Saramago e Porto Editora, 26ª ed., 2018, pp.79-80.
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