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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

JOSÉ SARAMAGO... SOBRE CAMILO CASTELO BRANCO


Casa de Camilo Castelo Branco, São Miguel de Ceide.
Imagem daqui.



«Onde está São Miguel de Ceide? Há aqui umas tabuletas generosas que apontam a direção, mas depois, de estrada em estrada, reduz-se o nome, escamoteia-se a seta, e vem a acontecer o ridículo de passar o viajante ao lado da casa que foi de Camilo Castelo Branco e não a ver. Três quilómetros adiante, num cruzamento enigmático, vai perguntar a um homem que ali está, talvez para caridosamente ajudar os viajantes perdidos, e ele diz: "Fica lá para trás. É ali num largo, onde está a igreja e o cemitério." Emenda o viajante os passos, corrido de vergonha, e enfim dá com a casa. São horas de almoço, o guia está no seu descanso, e o viajante tem de esperar. Enquanto espera, anda por ali passeando, espreita pelo portão, foi aqui que viveu e morreu Camilo Castelo Branco. O viajante sabe que a verdadeira casa ardeu em 1915, que esta é tão postiça como os merlões do Castelo de Guimarães mas espera que lá dentro alguma coisa o comova tanto como o chão natural que as muralhas rodeiam. O viajante é um homem muito agarrado à esperança.

Aí vem o guarda. "Boas tardes", diz um. "Boas tardes", responde outro. "Queria ver a casa, se faz favor." "Ora essa." Abre-se o portão e o viajante entra. Camilo esteve neste lugar. As árvores nem eram estas, nem as plantas, nem provavelmente o empedrado do chão. Está ali a acácia do Jorge, rente ao lanço de escadas, e essa é autêntica. O viajante sobe, o guarda vai dizendo coisas já conhecidas, e agora abre-se a porta do andar. O viajante compreende que não haverá milagres. A atmosfera é baça, os móveis e os objetos, por mais verdadeiros que sejam, trazem a marca doutros lugares por onde passaram e ao regressarem vêm estranhos, não reconhecem estas paredes nem elas os conhecem a eles. Quando a casa ardeu, só aqui estavam um retrato de Camilo e o sofá onde ele morreu. Ambos foram salvos. Pode portanto o viajante olhar o sofá e ver nele sentado Camilo Castelo Branco. E é também certo que o recheio destas pequenas salas, os objetos, os autógrafos, os quadros que estão na parede, tudo isto, ou pertenceu de facto a Camilo ou há forte presunção. Sendo assim, donde vem a amarga melancolia que invade o viajante? Será do ambiente pesado, do invisível mofo que parece cobrir tudo. Será da vida trágica que aqui dentro se viveu. Será o desconsolo das vidas falhadas, mesmo quando de gloriosas obras. Será isto, ou aquilo, ou aqueloutro. Nesta cama dormiu Camilo, aqui escrevia. Porém, onde está Camilo? Em S. João de Gatão, o fojo de Teixeira de Pascoaes é uma coisa quase assustadora que Camilo teria merecido. Ceide é um interior burguês oitocentista da Rua de Santa Catarina, do Porto, ou da Rua dos Fanqueiros, de Lisboa. Ceide é muito mais a casa de Ana Plácido, quase nada a de Camilo. Ceide não comove, entristece. Talvez por isso o viajante começa a sentir que é tempo de ver o mar.

José Saramago, Viagem a Portugal, Porto, Fundação José Saramago e Porto Editora, 26ª ed., 2018, pp.79-80.




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