"Chegara ao palácio desprovida de bens, sem as pompas devidas à filha do Vizir. Como uma jovem oriunda do deserto que, após perder a língua, a tenda, os camelos, as canções, o rastro da grei, passara a depender da misericórdia do Califa.
A modéstia de Sherezade, sem trazer nada de seu, vinda com a escolta do Vizir, surpreendera o soberano. Não podendo ele imaginar que, por baixo do caftã austero, com Dinazarda ao lado, a jovem disfarçava a esperança de vencer o cruel soberano. Confiante desde o início em que sua bagagem se constituía de uma persuasiva história.
Forçada por estas considerações, ela sacrificara objetos de família, herdados da mãe. Em especial, maravilhas como o cofre de marfim, a tigela de ouro, o tambor africano, o asno revestido de brilhantes, peças que lhe conformaram a sensibilidade, e prontamente a mergulhavam em uma memória tão real que quase a podia tocar com os dedos e vê-la contrair-se, mostrar sinais de dor.
Na manhã em que seguiria para o palácio do Califa, despertara cedo, iniciando as despedidas. Os escravos, em prantos, traziam-lhe os animais, iguarias do seu agrado, as peças caras ao seu coração, para jamais se esquecer da casa. Compungira-a, em particular, abandonar as tábuas corânicas, de sinuosa caligrafia, em que aprendera a ler e escrever. De tanto nelas acompanhar com destreza os versículos do Corão, repetia-as de cor, sobretudo às sextas-feiras. Dirigira-se aos parentes e serviçais certa de não voltar a vê-los. Aquela jornada, apenas iniciada, ia-lhe cobrar sacrifícios, renúncia à realidade e aos valores familiares, para lhe ofertar em troca o direito de pleitear a própria vida."
Nélida Piñon, Vozes do Deserto, Lisboa, Bertrand Editora, 2007, pp. 45-46
Na badana do livro:
Nélida Piñon nasceu no Rio de Janeiro em 1935. Formou-se em jornalismo e colaborou com vários jornais e revistas literárias antes do seu primeiro romance, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961. Em 1970 inaugurou a cadeira de Criação Literária na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os seus livros, traduzidos em treze países, mereceram importantes prémios internacionais, como o Juan Rulfo de Literatura Latino-Americana (...). Em 1990, entrou para a Academia Brasileira de Letras e, em 1996, tornou-se a primeira mulher a presidir a instituição. (...) Vozes do Deserto foi galardoado com o mais prestigiado prémio literário do Brasil, o Jabuti para o Livro de Ficção do Ano, atribuído pela Câmara Brasileira do Livro. Em 2005, Nélida Piñon foi distinguida com o prémio Príncipe das Astúrias, em Espanha.
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