“Era um
compartimento de tabiques de contraplacado, situado num dos extremos das
camaratas. Depois da movimentação daquelas horas, apreciei o sossego, a
quietude penumbrosa do sítio, onde nem os insectos buliam. Uma cobertura de
ráfia, rota e tisnada, pregada lá em cima, junto ao forro de madeira, vinha
tapar a janela até à meia altura em que, empilhado do lado de fora, um montão
de sacos de areia lhe ajudava a roubar a luz.
Ao meu
lado direito, sobrepunham-se dois beliches. Estendido no soalho, na minha
frente, sem mais espaço, um colchão, já aparelhado de lençóis e almofada,
branquejava na escuridão ambiente. Manta não era precisa, naquele calor. A um
canto, debaixo da janela, e obviamente arredada para me dar espaço ao colchão,
oscilava uma espécie de estante metálica, com duas prateleiras acanhadas, que
devia servir habitualmente de mesa-de-cabeceira. Num resto de chão, o meu saco,
torcido e corcovado…
O bom
remanso que por ali ia… Naquele negrume, as vozes e os ruídos do aquartelamento
soavam distorcidos, confusos, distantes, acentuando a impressão de conchego do
sítio, pese o miserabilismo dos trastes.
Logo me
ocorreu estender-me um bocado, a fazer horas, numa relaxação do espírito. Ensaiei
um passo, tenteando um equilíbrio difícil por sobre o colchão. Mas logo me
detive: estava alguém ali dentro. Eu tinha companhia. Lerdamente, um vulto
emergia do beliche de baixo, passava desajeitadamente pelo espaço estreito que
o separava do meu colchão, dava um saltito desasado, e postava-se na minha
frente, de mão estendida:
- É o
alferes engenheiro, não é? Muito gosto.
Na obscuridade,
eu mal lhe distinguia as feições. Notava-lha apenas a cara larga e o cabelo
curto, encaracolado. Apertei-lhe a mão, mole e descaída.
- Pois,
também durmo aqui… - disse sem que lhe tivesse perguntado nada. Usava uma farda
de trabalho abotoada nos pulsos e no colarinho, e acenava muito com a cabeça. Num
relance, distingui a cruz de latão amarelo na boina, que trazia apresilhada ao
ombro. Quem havia de ser? O capelão, claro.
- Ah,
padre, está bom?
-
Desculpe, estava aqui um bocadinho recolhido. Esta é a melhor hora… Pouco serviço,
mais sossego…
Devia sentir-se
ainda estremunhado da sesta. Procurava as palavras, coçando o queixo:
- Hum,
então fez boa viagem? Pois! Mas, olhe, o doutor andava aí à sua procua.
O doutor?
Tinham-me instalado no alojamento do padre e do médico. Oficial forasteiro,
ainda por cima de Engenharia, havia de me estar calhado o recolhimento dos
párias – os «intelectuais»… Antes assim.”
Mário de
Carvalho, “A última cavalgada”, Os
Alferes, Porto, Porto Editora, 2013 (1ª edição 1989), pp.60-61.
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