O Hospital de Todos-os-Santos na Panorâmica de Lisboa, desenhos s/ papel, séc. XVI, Biblioteca de Leyde
“Se, neste retrato, o Reino de Portugal é
apresentado de uma maneira precisa e completa no que diz respeito à sua
organização administrativa, política e económica, não o é no que toca à
sociedade não directamente envolvida no sistema burocrático do Estado:
encontram-se sobretudo breves notícias relativas à nobreza, à concessão dos
encargos públicos, aos benefícios e às comendas.
A segunda parte da obra, o «reverso», não foi
elaborada (…) como contraposição da primeira, mas como sua integração, como
complemento capaz de propor ao leitor um conjunto amplo e variado da realidade
portuguesa. Neste «reverso» o autor retoma brevemente – em sentido negativo –
alguns dos temas abordados na primeira parte e enfrenta novos assuntos
relacionados sobretudo com a qualidade da vida e com o sistema social:
descrição de Lisboa e reflexos da estrutura arquitectónica sobre a vida
quotidiana, vias de comunicação, fortalezas, ordens militares, componentes
étnicas, hábitos da vida das diferentes camadas sociais, relação da população
com a religião, etc.
(…)
Na descrição geográfica do país que se encontra no
«retrato», o autor põe em relevo a beleza de Lisboa
o sítio é belo e
irregular, nem todo plano, nem todo acidentado, ornado de muitos templos
devotos e ricos, alguns deles de razoável beleza, onde se efectuam serviços
divinos com grande solenidade.
As casas dos nobres são belas e cómodas, há um
castelo situado numa posição estratégica que serve como residência do
governador da cidade, há vários mosteiros, entre os quais se distingue o dos
Jerónimos, há dois paços do rei, «um melhor do que o outro, mas nem um nem
outro se podem dizer belos ou cómodos», há um arsenal em que se fabricam navios
enormes para as viagens da Índia, há na barra do Tejo duas torres em posição
estratégica (Belém e Torre Velha) e um castelo mais moderno (S. Julião).
Como se pode ver, o quadro que se apresenta ao
leitor é rico, pontual, substancialmente positivo e capaz de oferecer a imagem
de uma capital que não tem nada para invejar às outras da Europa. No «reverso»,
porém, Lisboa surge sob uma luz nova (…).
Aquela Lisboa, que tinha sido comparada com Paris,
aproxima-se agora do leitor mostrando as suas ruas em que faltam os esgotos, em
que a lama é tanta que obriga os nobres a andar sempre de botas e a cavalo
«porque de outra maneira se não poderia viver e ainda menos se, com o musgo, o
âmbar e o benjoim (que aqui, necessariamente, vêm da Índia) não se fizesse uma
defesa contra os maus cheiros». Esta situação, normal para uma cidade medieval,
aparece, porém, como fortemente atrasada se comparada com a vida de uma cidade
renascentista italiana. (…)
Um outro assunto que é enfrentado é o relativo à
vida quotidiana e aos hábitos das diferentes camadas sociais. O acento é,
porém, posto na melancolia dos portugueses, na sua predisposição natural de se
considerarem superiores, de serem condicionados nas relações sociais por um
formalismo exasperado, por um sentido de fidalguia que induz muitos nobres a
cumprirem acções incompreensíveis, e sobretudo de serem sujeitos em todos os
campos do viver à hipocrisia:
aquilo que mais
reina aqui é a hipocrisia que, na verdade, parece natural. É ela quem impera,
quem comanda, quem dá os cargos, quem governa o temporal e o espiritual, de
maneira que não interessa ser bom, bastando parecê-lo. Os homens, para serem
estimados, não importa que sejam bons cristãos e tementes de Deus mas sim –
sejam bons ou maus – que tragam um rosário, que andem sempre mastigando
padre-nossos, que visitem todos os altares à hora que toda a gente veja, e que
façam exibições semelhantes. Todas estas coisas, embora em si mesmas sejam
óptimas e santas, vê-se claramente que, na maior parte, são pura ostentação e
hipocrisia (…).
(…)
Da mesma maneira, também a vida e o vestuário das
mulheres portuguesas não ficam fora deste quadro pitoresco já que o autor vinca
a existência de alguns aspectos que a seu ver se revelam incompreensíveis: as
mulheres vestem à maneira de Espanha, preto por cima e com roupas de várias
cores por debaixo mas ao contrário das de outros países, que tentam conseguir
um cinto com pequena circunferência, as portuguesas enchem o cinto de faixas de
maneira que ficam sem formas e sem garbo. Além destas coisas exteriores, o
autor põe em relevo também alguns aspectos da vida social das mulheres
insistindo sobretudo sobre o facto que a sua existência está profundamente
condicionada pelos parentes e pelos maridos que as relegam em casa quase
prisioneiras, sendo-lhes por vezes negada também no âmbito familiar a
possibilidade de se sentarem à mesma mesa com os homens.
O aspecto mais original que se depreende deste
retrato é aquele de uma sociedade que, na sua maneira de encarar a existência,
de gozar a vida, de se vestir, não alcança aquela originalidade criativa e
aquela alegria que caracterizavam durante o século XVI a sociedade florentina
ou romana:
assim, que eles,
sendo por natureza de certo modo livres, se tornam em escravos, impondo a si
mesmos, sem a isso se verem obrigados, mil sujeições, e ainda embora muitos
hajam conquistado muitas riquezas, não as sabem gozar nas suas necessidades,
antes aquela mesma vida e aqueles mesmos costumes que tinham, possuindo mil
ducados, continuam tendo, possuindo cem mil.
É esta contestação de falta de fantasia e de adaptação
a uma vida mais livre, mais consoante com os costumes e com os gostos
promovidos pelo Renascimento que determina o sentimento de surpresa e a crítica
do autor, não uma vontade injustificada de odiar os portugueses e o seu país.
(…)”
Carmen Radulet, “Um Retrato do Reino de
Portugal no Século XVI”, in Mare Liberum,
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
nº14, dezembro de 1997, pp.102-109. Reflexão feita a partir de um códice anónimo, encontrado em Hannover, cujo título, na versão original era Ritratto et Riverso del Regno di Portogallo.