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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

UM RETRATO DE PORTUGAL NO SÉCULO XVI

O Hospital de Todos-os-Santos na Panorâmica de Lisboa, desenhos s/ papel, séc. XVI, Biblioteca de Leyde
Imagem daqui.




“Se, neste retrato, o Reino de Portugal é apresentado de uma maneira precisa e completa no que diz respeito à sua organização administrativa, política e económica, não o é no que toca à sociedade não directamente envolvida no sistema burocrático do Estado: encontram-se sobretudo breves notícias relativas à nobreza, à concessão dos encargos públicos, aos benefícios e às comendas.

A segunda parte da obra, o «reverso», não foi elaborada (…) como contraposição da primeira, mas como sua integração, como complemento capaz de propor ao leitor um conjunto amplo e variado da realidade portuguesa. Neste «reverso» o autor retoma brevemente – em sentido negativo – alguns dos temas abordados na primeira parte e enfrenta novos assuntos relacionados sobretudo com a qualidade da vida e com o sistema social: descrição de Lisboa e reflexos da estrutura arquitectónica sobre a vida quotidiana, vias de comunicação, fortalezas, ordens militares, componentes étnicas, hábitos da vida das diferentes camadas sociais, relação da população com a religião, etc.

(…)

Na descrição geográfica do país que se encontra no «retrato», o autor põe em relevo a beleza de Lisboa

o sítio é belo e irregular, nem todo plano, nem todo acidentado, ornado de muitos templos devotos e ricos, alguns deles de razoável beleza, onde se efectuam serviços divinos com grande solenidade.

As casas dos nobres são belas e cómodas, há um castelo situado numa posição estratégica que serve como residência do governador da cidade, há vários mosteiros, entre os quais se distingue o dos Jerónimos, há dois paços do rei, «um melhor do que o outro, mas nem um nem outro se podem dizer belos ou cómodos», há um arsenal em que se fabricam navios enormes para as viagens da Índia, há na barra do Tejo duas torres em posição estratégica (Belém e Torre Velha) e um castelo mais moderno (S. Julião).

Como se pode ver, o quadro que se apresenta ao leitor é rico, pontual, substancialmente positivo e capaz de oferecer a imagem de uma capital que não tem nada para invejar às outras da Europa. No «reverso», porém, Lisboa surge sob uma luz nova (…).

Aquela Lisboa, que tinha sido comparada com Paris, aproxima-se agora do leitor mostrando as suas ruas em que faltam os esgotos, em que a lama é tanta que obriga os nobres a andar sempre de botas e a cavalo «porque de outra maneira se não poderia viver e ainda menos se, com o musgo, o âmbar e o benjoim (que aqui, necessariamente, vêm da Índia) não se fizesse uma defesa contra os maus cheiros». Esta situação, normal para uma cidade medieval, aparece, porém, como fortemente atrasada se comparada com a vida de uma cidade renascentista italiana. (…)

Um outro assunto que é enfrentado é o relativo à vida quotidiana e aos hábitos das diferentes camadas sociais. O acento é, porém, posto na melancolia dos portugueses, na sua predisposição natural de se considerarem superiores, de serem condicionados nas relações sociais por um formalismo exasperado, por um sentido de fidalguia que induz muitos nobres a cumprirem acções incompreensíveis, e sobretudo de serem sujeitos em todos os campos do viver à hipocrisia:

aquilo que mais reina aqui é a hipocrisia que, na verdade, parece natural. É ela quem impera, quem comanda, quem dá os cargos, quem governa o temporal e o espiritual, de maneira que não interessa ser bom, bastando parecê-lo. Os homens, para serem estimados, não importa que sejam bons cristãos e tementes de Deus mas sim – sejam bons ou maus – que tragam um rosário, que andem sempre mastigando padre-nossos, que visitem todos os altares à hora que toda a gente veja, e que façam exibições semelhantes. Todas estas coisas, embora em si mesmas sejam óptimas e santas, vê-se claramente que, na maior parte, são pura ostentação e hipocrisia (…).

(…)

Da mesma maneira, também a vida e o vestuário das mulheres portuguesas não ficam fora deste quadro pitoresco já que o autor vinca a existência de alguns aspectos que a seu ver se revelam incompreensíveis: as mulheres vestem à maneira de Espanha, preto por cima e com roupas de várias cores por debaixo mas ao contrário das de outros países, que tentam conseguir um cinto com pequena circunferência, as portuguesas enchem o cinto de faixas de maneira que ficam sem formas e sem garbo. Além destas coisas exteriores, o autor põe em relevo também alguns aspectos da vida social das mulheres insistindo sobretudo sobre o facto que a sua existência está profundamente condicionada pelos parentes e pelos maridos que as relegam em casa quase prisioneiras, sendo-lhes por vezes negada também no âmbito familiar a possibilidade de se sentarem à mesma mesa com os homens.

O aspecto mais original que se depreende deste retrato é aquele de uma sociedade que, na sua maneira de encarar a existência, de gozar a vida, de se vestir, não alcança aquela originalidade criativa e aquela alegria que caracterizavam durante o século XVI a sociedade florentina ou romana:

assim, que eles, sendo por natureza de certo modo livres, se tornam em escravos, impondo a si mesmos, sem a isso se verem obrigados, mil sujeições, e ainda embora muitos hajam conquistado muitas riquezas, não as sabem gozar nas suas necessidades, antes aquela mesma vida e aqueles mesmos costumes que tinham, possuindo mil ducados, continuam tendo, possuindo cem mil.

É esta contestação de falta de fantasia e de adaptação a uma vida mais livre, mais consoante com os costumes e com os gostos promovidos pelo Renascimento que determina o sentimento de surpresa e a crítica do autor, não uma vontade injustificada de odiar os portugueses e o seu país. (…)”

Carmen Radulet, “Um Retrato do Reino de Portugal no Século XVI”, in Mare Liberum, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, nº14, dezembro de 1997, pp.102-109. Reflexão feita a partir de um códice anónimo, encontrado em Hannover, cujo título, na versão original era Ritratto et Riverso del Regno di Portogallo.

 

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