François Gérard, Ossian na margem do Lora, invocando os deuses ao som de uma harpa
Não faço eu tão fraca ideia de mim ou
do leitor, que suponha assaz falta de interesse a minha narrativa ou o tenha a
ele por um tal cabeça de vento, que admita se esquecesse da estrondosa
gargalhada que desandou o padre prior ao manhoso saloio, quando este lhe propôs
desse o dote a sua sobrinha Joana, à falta de outra mais digna. À descomunal
risada é que o sono de Gabriel, se não quebrado inteiramente, ao menos já
estalado pelo grito de Bartolomeu, não pôde resistir. O rapaz fez uma
reviravolta, abriu os olhos, deu uma guinada ao corpo, ficou assentado, com as
pernas estendidas e a cabeça inclinada sobre o peito, meditabundo por alguns
momentos e imóvel, como um daqueles manigrepos de que reza Fernão Mendes Pinto.
Depois, levando as mãos à cabeça, começou a coçar rápido de alto a baixo por
cima das orelhas. Pouco durou, todavia, essa primeira fúria. Como o som da
harpa de Ossian, alongando-se e esmorecendo por entre a nebrina das serras,
aquele coçar de alma afrouxou e desvaneceu-se gradualmente; as mãos,
confrangidas em forma de garra, espalmaram-se flexíveis, os braços, hirtos e
erguidos, despenharam-se mortais ao longo do tronco, e a cabeça, sonolenta,
balouçou à direita, depois à esquerda, depois pendeu de chofre para diante e
resultou, quase ao bater sobre os joelhos, semelhante ao judeu martirizado pela
Santa Inquisição, quando, ao descer pendurado da polé, a corda, atada mais
curta que o espaço médio entre o chão e a roldana, o desconjuntava, retendo-o
subitamente alguns palmos acima do pavimento. Assim se desconjuntou aquela
máquina de sono, e Gabriel abriu seis vezes a boca, engradou-a com outras
tantas cruzes, esfregou os olhos com a parte anterior do canhão da jaqueta, mirou
por entre os sacos os dous velhos, embasbacou de ver ali o prior e, sem tugir
nem mugir, pôs-se a escutar o diálogo que se travara entre ambos. (…)
Segredo
em boca de rapaz, outros dizem de mulher (eu, por decência e pelos meus
princípios, sustento a moção relativa aos rapazes), é manteiga em nariz de cão.
Ele, na verdade, contou-o com variantes para mais e para menos, mas contou-o,
que é o caso.
Alexandre
Herculano, “O Pároco de Aldeia”, in Obras
Completas de Alexandre Herculano – O Pároco de Aldeia e O Galego, Vida, ditos e
feitos de Lázaro Tomé, Livraria Bertrand, 1969, pp.137-138.
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