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Escola Secundária José Saramago - Mafra

segunda-feira, 24 de abril de 2017

A ASCENDÊNCIA DE CAMILO






«(...) Elói percorre um mapa de vendedor ambulante com a proficiência de quem vai descobrir um firmamento na terrs, estradas que desembocam em caminhos, caminhos que se dividem em atalhos, e atalhos que se perdem em bosques e matagais, tudo isto compondo o tecido de estrelas que apenas existe na mágica de quem o sabe inventar. Marcha com ligeireza atrás dos seus machos, carregados com quanto atraia a freguesia do negócio, couros e peles, facas e tesouras, e um que outro pano mais fino, capaz de merecer o encantamento da menina em vésperas de casar. Este homem esgalgado e trigueiro, exercitador de uma muscularidade que lhe resulta da modéstia dos princípios, e da indiferença à preguiça, cultiva uma coroa de relações afáveis com o Universo. Reconhece como ninguém os pastores que lhe acenam à passagem, os ciganos que lhe fornecem um lote de pratos de estanho, e os mendigos com quem reparte o pão que leva, e a condição de filho do sol ou da chuva, que a Providência Divina determinar. Elói jamais cede à taciturnidade, se bem que tolere a raiva, e não há dia em que não assobie durante três horas sem parança.

O andarilho, acompanhado pelas suas bestas, galga barrancos, atravessa panascais, e atinge os campos cultivados que lhe apontam o exemplo do trabalho dos outros, e o informam da estação do ano em que segue. Ao chegar ao povoado, lança o seu comprido pregão, aprendido do avô, e do pai, e reza mentalmente a prece que vem muito de trás, e que alude a Santa Saba, e à lei de Moisés. Os do sítio concedem-lhe uma atenção austera, fingindo conhecê-lo vagamente, e abstendo-se de entrar em demoradas confidências. Elói apresenta os seus artigos com uma gesticulação correcta, permitindo-se sublinhar a qualidade do que vende, mediante a referência às pessoas gradas que não lhe dispensam os serviços. Mas não recua uma unha do dedo mindinho, quando se trata de fazer descer o preço abaixo daquilo que antecipadamente estabeleceu como seu folgado lucro. Não escasseia, é bom que se acrescente, quem simpatize com ele, e lhe ponha ao dispor o palheiro, ou a loja dos animais, para que pernoite, e lhe traga o jarro de vinho a que nunca se nega, ou a malga de favas a que nunca diz que não. "Este homem Elói cobrou-me mais do que o que valia um cinturão que comprei no São Miguel para o meu neto", resmungará uma das comadres, mas não haverá de resistir a vir admirar na próxima visita do marchante o sortido recente com que estivou ele os machos, tão familiares da astúcia do amo que nada parece perturbar-lhes o sono de pé no larguinho da igreja. (...)»

Mário Cláudio, Camilo Broca, Alfragide, Dom Quixote, 2009, pp. 85-86.




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