Giotto di Bondone (1276-1337), Natividade (entre 1304 e 1306).
A CONSOADA
- As argolas, mãe? - perguntou, do catrezinho de bancos, a voz estremunhada da criança, que acordara ao rangido da porta.
- Dorme, rapariga... Não ficas sem a consoada... Teu pai ainda não chegou da feira.
A criança voltou-se no catre, ficou com os olhos abertos, encolhida e emudecida, fitando o fogo da caruma, quase extinto no lar, onde requentava a ceia do Natal.
Acocorada na soleira da porta, a mãe, embrulhada num xale, está à espreita, atenta ao menor rumor que vem da estrada.
Já por duas vezes, com o ramalhar das carvalhas ao vento, ela cuidou ouvir tropear ao longe a cavalgadura. Não se enxergava um palmo na escuridão da noite de lua nova. Nem um luzeiro de estrela trespassa agora aquele negrume denso que enche os espaços e por onde o vento anda à solta, varejando as carvalheiras das bouças e assobiando nas agulhas dos pinheiros como uma orquestra de flautas.
- Valha-me Deus! O que retém lá por fora aquele homem, a estas horas da noite! - murmura a mulher, sucumbida.
- Ó mãe, não haveria argolas na feira e terá o pai ido por elas à vila...
- Dorme, rapariga! Amanhã já tens as argolas nas orelhas... Por amor delas desandou o teu pai, sozinho na égua, por essa serra, que mete medo!
Eram a consoada da filha. A colheita em pão e vinho fora de dar graças a Deus. Não havia a pequena de ficar sem as argolas por mais tempo. Logo ao clarear da manhã, o Manuel da Eira selara a égua, entalara o varapau debaixo da coxa, lembrado da quadrilha de Redemoinhos, e pusera-se a caminho para a feira de Lanhoso, prometendo estar de volta ao amortecer do sol, para consoar.
Ainda a mulher advertira, receosa:
- Mete-te a a caminho cedo. Toma tento com a ladroagem de Redemoinhos!
E o Manuel da Eira, destemido, voltara-se no selim:
- Hoje é o dia em que nasceu o Salvador. Os ladrões também são gente cristã!
E picando a égua com a espora, abalara, afoito, pela estrada.
Já ao longe, na igreja da freguesia, os sinos tinham tocado para a missa do galo. Rajadas mais fortes de vento enchiam os céus de um burburinho sibilante e agitavam no alpendre os sarmentos das vides ainda por podar.
Súbito, a criança e a mãe ergueram-se no catre e no poial da porta.
Uma voz chama, de entre o negrume da noite:
- Ó s' Maria da Eira!
Sobre as traves, o vento parece que arrasta as telhas. Na corte, os porcos grunhem. Uma nuvem de cinzas ergue-se e rodopia no lar, sobre a caruma.
Sem pinga de sangue, a mulher grita, numa ansiedade aflita, empurrando a cancela:
- Quem me chama?
E entre o rumor do vento distingue a tropeada da égua, os passos vagarosos de dois homens.
- Traga a candeia... - torna a voz, na estrada.
A criança está já fora do catre, à espera das argolas, esfregando nas costas da mão os olhos foscos de sono.
Tropeçando na saia, a mulher desengancha a candeia da parede e, à luz mortiça, saindo ao terreiro, vê o seu homem, trazido a braços, como morto. Atrás do grupo fúnebre avança a égua trôpega.
Os homens param. O da frente, encarando com o desatino da mulher, resmoneia, esbaforido:
- Tome conta na luz! Não vamos agora ficar neste negrume! O homem vem vivo.
Só então ela parece acordar do seu doloroso espanto e soluça, erguendo para o céu ventoso os braços, deixando fugir o xale.
- Nossa Senhora! Divino amor de Deus, que estou desgraçada!
- Cale-se, mulher! Derreados vimos nós com este peso! Demos com ele numa vala, caído ao pé da égua. Foi pancada que lhe atiraram à falsa fé para o roubar.
Em altos gritos, ela empurra a porta, ajuda a deitar o seu homem no catre. A criança soluça, refugiada a um canto, sufocada pelo medo, e, enquanto a mulher rasga, com a violência do terror, uma camisa de linho para ligaduras, os dois homens lavam as mãos ensanguentadas num alguidar e atiçam o lume da lareira com um graveto de tojo.
Debalde a mulher agora esparge de vinagre o rosto desfigurado do ferido.
Com o braço pendente e as unhas cravadas na palma da mão direita, enlameado e lívido, o Manuel da Eira parece morto, estendido no catre.
- Ele já não tem vida! - clama, num alarido de lágrimas, a viúva, desanimando de abrir aquela mão crispada de defunto.
Os homens deixam de atiçar o braseiro, amparam-na e erguem-na do chão, onde ela se deixou cair desanimada, arrancando os cabelos, com um escarcéu de gritos e soluços.
- Os mortos não fecham as mãos. Isto é coisa que ele tem escondida.
Então, novamente, reconfortada por uma última esperança, ela esforça-se, mais do que em estancar o sangue das feridas, em abrir o punho obstinadamente fechado do seu homem.
Mas desfalece depressa e de novo abate, com a voz estrangulada de soluços maiores.
Por sua vez, os dois homens tentam, inutilmente, desunir da palma sangrenta os dedos inflexíveis.
- Pai, abra a mão! - geme também a criança, aterrada e aflita.
As suas mãozinhas molhadas de lágrimas imaginam ter a força, que aos outros falta, para despegar aquela garra.
- Abra a mão, pai!
E de repente, obedecendo à vozita implorante, a mão abre-se e duas argolas de oiro, pequeninas, aparecem, reluzem e tilintam no soalho.
Carlos Malheiro Dias, "A consoada", in Vinte Belos Contos de Natal, antologia organizada por Manuela Espírito Santo, Vila Nova de Gaia, Editora Ausência, 2004, pp. 59-62.
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