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"(...) Quem lê hoje Homero? Quem lê Dante? Qual de vós, qual de nós, leu a «Odisseia» e «Os Sete diante de Tebas», e Sófocles, e Tácito, e o «Purgatório», e os dramas históricos de Shakespeare, e até Voltaire, e até Camões? Decerto, têm opiniões sobre o «nosso estilo de Tácito», e a «ironia de Aristófanes»; mas essas sentenças transmitem-se, já feitas, para uso da eloquência, um pouco apagadas e cheias de verdete, como os patacos que vão de mão em mão. (...)
Apenas aos vinte anos, ao entrar para uma universidade, no começo de uma carreira de letras, se abre aqui e além esses que chamamos «os clássicos», e se percorre distraidamente algum episódio mais famoso - como o de «Francesca de Rimini» ou uma arenga do «Cid». Depois, só se torna a encontrar o grande poema ou o grande drama mais tarde, numa sala, sobre a mesa, com ilustrações de um Doré, uma encadernação tão dourada como a caixa de uma múmia egípcia, e servindo de ornamento, ao lado de um cofre de marfim, ou de rosas frescas num vaso da China. A «Divina Comédia», o «D. Quixote», a «Ilíada», são hoje, a não ser para os comentadores, ou para espíritos requintadamente literários - volumes decorativos. A multidão conhece apenas «Hamlet» por o ver constantemente em oleografias, vestido de negro, entre a neve de um cemitério, com a caveira de Iorique na mão. E Fausto escaparia da nossa memória - se não se apresentasse todas as noites diante dos lustres, a contar-nos, ao som dos violoncelos, os anseios da sua vasta alma, arranjados em árias e em valsas onde se embala o cismar das mulheres.
Todavia, uma coisa fica dos grandes génios: o contorno lendário da sua personalidade. É como um retrato moral que se fixa na imaginação, e que se vai reproduzindo através dos longos tempos: assim perpetuamente vemos Dante nas suas longas vestes fúnebres, lívido e sinistro, e contemplado nas ruas com terror, como aquele que voltou do Inferno. E essa imagem material torna o homem de génio tanto mais amado, quanto ela mais simboliza a atitude moral que o seu espírito tomava no serviço da humanidade: assim veneramos a figura de Voltaire, que invariavelmente nos aparece na sua poltrona em Ferney, soltando de lábios que sorriem sempre, e que já não podemos conceber senão a sorrir, esses epigramas que iam ferir mortalmente no flanco a velha sociedade. (...)"
Eça de Queiroz, "Carta ao Director da «Ilustração»", in Notas Contemporâneas, fixação de texto e notas de Helena Cidade Moura, Lisboa, Edição Livros do Brasil, s/d, pp. 93-94.
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