M. C. Escher, Relativity (1953).
«Resvés ao caminho-de-ferro de Entrecampos, em rua estreita e discreta, de que o nome não me ocorre, foi construído, há anos, o controverso edifício da Fundação Helmut Tchang Gomes, que, como é sabido, suscitou indignações veementes na migalha de público dita "os intelectuais", cismas avinagradas na Associação dos Arquitectos, balanceios incómodos na cadeira dum ministro, e choros convulsos numa misteriosa viúva de quem nunca mais se soube nada, nem eu nem ninguém. De controversa, a instituição também houve o seu quê, quando, em tempos, sediando ainda em Belém, no bairro das embaixadas, a alguns jornais desinibidos, muito hábeis em perscrutações, lhes deu para farejar tortuosidades financeiras, sumptos bizarros e habilidades de engenharia fiscal. Os anos passaram, as inflamadas arguições bocejaram em inquéritos inconclusos, (...) e a Fundação, discretamente, pacatamente, mortiçamente, lá foi patrocinando uns concertos de câmara, uma excursão à Nova Zelândia (...) e um recital de poesia hexamétrica em baixo-latim.
Naquela rua de Entrecampos, certo dia, fizeram implodir um velho prédio de estilo dito de Munique, com larga presença de basbaques e prevenção acautelada das forças da ordem. Ergueu-se um tapume, com os competentes janelos para espreitadores profissionais, destinados a evitar o chamado efeito Parmentier, (...) tapume que atraiu mais amadores de
grafitti e os roubadores de tábuas que os espreitas de feitio. Não tardarm trabalhadores imigrantes, escavadoras, martelos pneumáticos, andaimes, uma grua medonha, terror dos aviadores, e, em menos de nada, no espaço de se ir ali e já vir, estava a edificação pronta, pintada e inaugurada, com discursos, bandeirinhas e croquetes.
(...)
Sempre que em Lisboa se constrói um prédio de estilo, com prosápia inovadora, cai Tróia, caem o Carmo e a Trindade, caem dirigentes políticos, caem reputações, as ondas sonoras dos desmoronamentos imaginários ressoam, vibram, enervam, insistem, maçam e só o que não cai é o edifício em causa, como não caiu este. De novo a pacatez da Fundação foi ofendida, violada a sua discrição, e o seu nome mencionado. Houve agitação, a subir nos primeiros dias, a estacionar depois e a descer sempre daí por diante. A polémica foi transferida dos diários para os semanários, destes para as revistas especializadas, daí passou aos livros e acabou, naturalmente, no olvido. (...)
A Fundação brilha e refulge, entre os evinéis fuliginosos e azulejos tisnados das redondezas, no seu colorido de magenta, sabiamente combinado com o verde-alface de uns acrescentos metálicos construtivistas, em forma de canudo. Uns salpicos de cravos de latão dourado, organizados ao longo , da fachada, evocam formas que se prestam à discussão, embora já desapaixonada. Uns vislumbraram ali uns contornos selectos duma harpa, outros, o brado nacionalista dum barrete de campino. Numa homenagem a Jorge Luís Borges do arquitecto letrado - ou, quem sabe, do inspirado mestre-de-obras - lá está mesmo uma escada que não leva a parte nenhuma e que, a determinada vadiagem da zona, pareceu vazadouro ideal (...).
Com olhos de ver, ressalta ali a história arquitectónica da Humanidade numa síntese muito proveitosa para estudantes. Está representado o divino Imnhotep com a sua pirâmide de Sacara, Fídias com os frisos do Partenão, Vitrúvio com os seus criptopórticos, Mestre Afonso Domingues, com a abóbada da Batalha, a Bauhaus com as suas lisuras escorridas, Frank Loyd Wright com uma grande superfície vidrada, Niemeyer com uma esfera polida, e Raul Lino, com beirais próprios de andorinhas, por cima de tudo o que seja abertura, grande ou pequena, quadrada ou redonda, sisuda ou festiva. A obra figura na capa dum álbum chamado
Lisboa Pós-Moderna que as más-línguas denunciam encomendado pela própria Fundação a uma senhora com fama de excelente fazedora de álbuns, especializada em porcelanas Ming (...).»
Mário de Carvalho, Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, pp.13-16.