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Escola Secundária José Saramago - Mafra

segunda-feira, 6 de junho de 2016

UMA CIDADE INVISÍVEL

Michelangelo Buonarroti, Sibila de Delfos.
Imagem daqui.


"As Cidades ocultas. 3.


Uma Sibila, interrogada sobre o destino de Marozia, disse:
-- Vejo duas cidades: uma do rato, outra da andorinha.

O oráculo foi assim interpretado: hoje Marozia é uma cidade onde todos correm em galerias de chumbo como bandos de ratos que arrancam dos dentes uns dos outros os restos caídos dos dentes dos ratos mais ameaçadores; mas está para começar um novo século em que todos em Marozia voarão como as andorinhas no céu de verão, chamando-se como num jogo, exibindo-se em reviravoltas de asas quietas, libertando o ar de melgas e mosquitos.

-- Já é tempo de acabar o século do rato e começar o da andorinha -- disseram os mais resolutos. E de facto já sob o torvo e mesquinho predomínio dos ratos se sentia, entre a gente menos à vista, incubar um movimento impetuoso das andorinhas, que apontam para o ar transparente com um ágil golpe de cauda e desenham com a lâmina das asas a curva de um horizonte que se alarga.

Voltei ao cabo de vários anos a Marozia; a profecia da Sibila considera-se cumprida há muito tempo; o velho século está enterrado; o novo está no auge. A cidade mudou, claro, e talvez para melhor. Mas as asas que vi por toda a parte são de desconfiados guarda-chuvas sob os quais as pálpebras pesadas se baixam sobre os olhares; há gente que julga voar, mas já é muito se se elevarem do solo desfraldando balandraus de morcego.

Sucede também que, passando pelas compactas muralhas de Marozia, quando menos se espera vemos abrir-se uma espiral e aparecer uma cidade diferente, que ao fim de um instante já desapareceu. O segredo estará talvez em saber quais as palavras que se devem pronunciar, quais os gestos a fazer, e em que ordem e ritmo fazê-los, ou então basta o olhar a resposta o aceno de alguém, basta que alguém faça qualquer coisa só pelo prazer de fazê-la, e para que o seu prazer se torne o prazer dos outros: nesse momento mudam todos os espaços, as alturas, as distâncias, a cidade transfigura-se, torna-se cristalina, transparente como uma libélula. Mas tem de acontecer tudo como que por acaso, sem lhe dar demasiada importância, sem a pretensão de se estar a realizar uma operação decisiva, tendo bem presente que de um momento para o outro a Marozia de outrora voltará a soldar o seu teto de pedra teias de aranha e bolor sobre as cabeças.

O oráculo enganou-se? Nada o garante. Eu interpreto-o deste modo: Marozia consiste em duas cidades: a do rato e a da andorinha; ambas mudam com o tempo; mas não muda a sua relação; a segunda é a que está para se libertar da primeira.

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, Alfragide, Dom Quixote, 2015, pp. 164-165.


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