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Escola Secundária José Saramago - Mafra

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

O ECO


Imagem daqui.




No silêncio liso da neve, incha um rumor pela aldeia. Estremeço violentamente - foi ontem. Abro as janelas de um golpe, os olhos cegam-me ao impacto da reverberação do sol. O rumor cresce ainda no ar de vidro, depois imobiliza-se, amortece e finalmente cessa. Um motor de automóvel, pareceu-me. Estalam-me os ouvidos à subtileza da aragem, na luz estridente da manhã. Mas nada ouço: terei enlouquecido? Saio à rua, olho a toda a volta: só a aldeia submersa, apavorada, de olhos tristes. Um galo canta no meu quintal. É meu, o único. O grito sobe pela coluna de sol, rasgado, sangrento. Abre-se lá ao alto, embate pelos montes, desnorteado, à procura de uma significação. Um instante, absurdamente, ainda espero que outro galo lhe responda. Mas nem ele próprio se responde a si. É um galo isolado, estranho, sem sentido visível, como o brilho estrídulo da neve. A aldeia olha em silêncio, eu escuto ainda estonteado. Abruptamente porém atiro um berro grosso para o horizonte

        - Eh!...

e fico extático, aterrado comigo, do excesso de mim. Não chamava ninguém: clamava a minha abundância, decerto o meu desespero. Há quanto tempo não falava? A palavra é um mistério, Ema dizia; é um ruído estúpido e o espírito vive nele. Assim a palavra ouvida é o terror desse espírito, desse mistério. Por isso apenas se aguenta, se há mais alguém para aguentar. Acontece-me às vezes falar alto; mas não me ouço. As palavras são então como as pedras, quando me não pergunto, «o que é uma pedra?», ou «porque é que há pedras?» Outras vezes acontece que dou conta das palavras antes de morrerem de todo. Então fico apavorado ou surpreso, como se uma sombra passasse onde não havia razão de passar.

Eis porque muitas vezes falo deliberadamente para me ouvir. É uma experiência dura. Subitamente, alguém surge à minha face e é no entanto invisível. É como se eu criasse um homem sem a coragem de um Deus. Ou como se criasse um Deus. De dia, no entanto, é mais fácil: o sol dá uma ajuda. Mas agora o meu urro é mais poderoso que o sol. Que violência - um homem! Como não hás-de ser tu bastante para encher a terra inteira? Maior que a montanha, o deserto da neve - tu certificado ainda na vibração dos teus ouvidos, nos ecos esparsos pela distância.

Subitamente, porém, quando o último eco morreu, um grito enorme subiu de novo no ar

        - Eh!...

Espera: não foste tu que gritaste. (...)

Vergílio Ferreira, Alegria Breve, Lisboa, Quetzal Editores, 2015, pp. 79-80.



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