Bíblia de Abravanel (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra)
Imagem daqui.
“Ao contrário
do que ocorre com os demais judeus peninsulares, vivessem eles sob o domínio
muçulmano de Córdova ou dos reis taifas, ou, mais tarde, sob o domínio dos reis
cristãos de Castela ou de Aragão, sabemos muito pouco sobre a cultura e a obra
literária e artística dos judeus que viveram em território nacional. (…)
Sem
conseguir chegar a qualquer conclusão, para além da quase ausência de
comprovativo documental dessa produção, não posso deixar de referir o pouco que
se conhece, apesar da existência de muitos documentos cuja proveniência ou autoria
é desconhecida, e que muitas vezes são atribuídos pelos historiadores aos
judeus “espanhóis”, esquecendo que “sefardita” abrangia toda a Península. Agrava
ainda a situação o facto de a onomástica peninsular ser muito semelhante. Portugal
e Castela tiveram, desde o século XIV, famílias com apelido Alguadix, Caro,
Usque, Sacuto, Cohen, para já não mencionar aquelas cujo nome de família
desconhecemos porque escondido sob a capa de topónimos como Toledano, Sevilhano,
Navarro, de Leão, etc. Desconhecemos os poetas portugueses de credo moisaico,
excepto (…) Vidal, judeu de Elvas, que se imortalizou por duas cantigas de amor
à maneira provençal, em louvor da dama formosa daquele concelho, Samuel de
Leiria, cujo nome é mencionado num documento alcobacense como trovador, ou Juda
Negro, trovador da rainha D. Filipa de Lencastre, talvez o mesmo Juda Yahia,
conhecido em Castela, nos finais do século XIV, inícios do século XV. (…)
Para além
da família Ibn Yahia/ Negro, cuja memória chegou até nós, outros nomes são-nos
conhecidos. Um deles identificava o médico do conde D. Pedro de Meneses,
capitão-mor de Ceuta, José Zarco (…). Outra família importante na corte de Avis
foi a dos Abravanéis. Originários de Sevilha, imigraram para Portugal, nos
finais do século XIV, quando das perseguições às comunidades judaicas da
Andaluzia, em 1391. (…)
É
provável que, numa corte culta como era a de Avis, os judeus que a frequentavam
exteriorizassem interesses que os aproximassem dos cortesãos cristãos. Verificamos
pelas anotações do rei D. Duarte que o rabi-mor Guedelha Negro manifestava
conhecimentos de astronomia e interesse por cálculos astronómicos a partir da
posição da estrela polar. Outros possuíam bibliotecas, como aquela que D. João
II confiscou a Isaac Abravanel e onde provavelmente existiriam (…) obras de
filósofos gregos e de autores latinos, ou obras de cristãos contemporâneos.
Médicos,
dominando na quase totalidade o exercício da medicina no reino, os judeus
portugueses aliavam a arte de curar doenças com a astrologia, o que seria
reconhecido em tom divertido por Gil Vicente na Farsa dos Físicos. Estudavam o Canon de
Avicena e Averróis junto a outro mestre; outros frequentavam a Universidade de
Coimbra, como Abrãao e Guedelha Negro; outros ainda pela sua qualidade foram
físicos e cirurgiões-mores. Foram os primeiros oftalmologistas conhecidos em
Portugal, como mestre Nacim. (…)
Os judeus
portugueses cultivaram a arte da caligrafia e da iluminura, assim como abriram
oficinas tipográficas no reino.(…) Desconhecemos o valor da biblioteca da comunidade
judaica de Lisboa, quando foi confiscada para a coroa com a expulsão e baptismo
forçado dos judeus portugueses. Apenas podemos supor o quanto seria valiosa, se
pensarmos que a biblioteca de Toledo tinha sido trazida para Portugal. Mestre António,
converso, físico do rei D. Manuel, censurá-lo-ia pela destruição de tão valiosa
biblioteca, quando o soberano resolveu doá-la ou vendê-la ao desbarato, sem ter
a noção do valor dos códices que ela continha.”
Maria José Ferro
Tavares, A Herança Judaica em Portugal,
CTT Correios de Portugal, 2004, pp. 132-147.
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