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Escola Secundária José Saramago - Mafra

sexta-feira, 19 de julho de 2013

DUAS E TRÊS


Escadaria interior da Biblioteca Nacional do Brasil, Rio de Janeiro
Imagem daqui.
 


DUAS E TRÊS
Levei um susto quando aquela voz soprou na minha nuca:
- Se tu é bom, mata essa: «Não durmo no Rio porque tenho pressa, duas e três.»
Voltei-me para ver quem falava. Era um homem quarentão, alto e gorducho, de roupas imundas, rasgadas, e cara encardida. Uma cara simpática de gângster regenerado.
Ele ria:
- Mata essa, vamos!
Era de manhã cedo, em junho, e fazia um frio agradável. Acordara e, sem ter para onde ir, sentei-me naquele banco da Praça Floriano, em frente à Biblioteca Nacional, à espera de que ela abrisse. Meu velho terno marrom esfiapava nas mangas, o sapato empoeirado, a barba por fazer. «Esse homem está me tomando por um vagabundo», pensei comigo. E achei divertido.
- Matar o quê?
- A charada, meu besta!
O velho se debruçava em cima de mim, com um riso gozador. Fedia a suor e molambo. Afastei-o um pouco, com o braço e, meio sem saber o que fizesse, acedi.
- Como é mesmo a charada?
- Só repito esta vez, tá bom? «Não durmo no Rio porque tenho pressa, duas e três.»
Sempre fui um fracasso para matar charadas. Fiz um esforço para penetrar nas palavras, mas em vão.
- Digo mais – esclareceu-me o vagabundo. – Chaves: «Não durmo» e «Rio». Conceito: «pressa»… Mas você é burro, hein?
Donde diabo viera aquele camarada impertinente, para me obrigar a resolver uma charada àquela hora da manhã? Mas meu orgulho estava em jogo. Pensava e o pensamento escapulia.
- Não consigo decifrar. Não me amola.
- Então você perdeu.
- É, perdi.
- Então paga.
- Paga o quê?
- Duas pratas, meu Zé. Você perdeu!
Era incrível. Comecei a rir. Ele também ria e dizia: “Paga, duas pratas.”
Dei-lhe uma cédula de dois cruzeiros e fiquei ali rindo enquanto ele se afastava arrastando seus sapatos furados.
Semanas depois, estava eu no Passeio Público, quando ele veio com a mesma conversa, como se nunca me tivesse visto. «Mata essa: não durmo no Rio, porque tenho pressa, duas e três.» Respondi-lhe em cima da bucha: «Não durmo, velo; no Rio, cidade: velocidade.» Ele ficou desapontado. «Você perdeu», disse-lhe eu. «Paga duas pratas.» Olhou-me sério, meteu a mão no bolso e estendeu-me duas notas imundas. Fomos tomar juntos um café na Lapa.
Ferreira Gullar, Poesia Completa, Teatro e Prosa, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 2008, pp.921-922.


 

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