Alfredo Roque Gameiro, Encenação de Estreia do Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente. Daqui.
O entardecer da nossa Idade Média
tem o encanto nostálgico do Outono. Ideias e compleições espirituais declinam
com suave lentidão, sem arrancos vigorosos do pensamento nem estremecimentos
arrebatados da sensibilidade. Brandamente, como um fio de água que se escoa. O
espírito foi jovial, o ânimo resoluto, os modos corteses, a inteligência
tranquila e segura de si, mas a mente desconheceu dúvidas promissoras, a
vontade, com querer virilmente o que quis, talvez se afirmasse mais
extensamente em nolições que em volições, e a expressão literária, em si mesma,
como forma de arte, não teve agilidade nem se enlevou no puro prazer estético.
Dir-se-ia que ninguém, por então, deixara correr a pena só movida pelo deleite
de escrever. (…) Poetas, prosadores, pregadores, todos utilizavam o verbo para
instruir ou para entreter, para defender ou para atacar. A intenção didáctica
tornara-se o signo daquela hora vesperal (…). Daí o desinteresse pela arte
literária como expressão da sensibilidade estética, a intangibilidade de regras
e preceitos, e o predomínio da temática ético-religiosa, tão absorvente que mal
houve quem lançasse rápidos olhares para a gesta dos Descobrimentos e tão
suspicaz que não custa a descobrir a reprimenda severa sob a aparência franca
do riso e do chiste.
Gil Vicente fez-se homem de letras
nesta ambiência. O seu génio de poeta e a frescura da sua inspiração lírica
colocaram-no fora e acima do estreito cercado do seu tempo; a sua mente,
contudo, não se desprendeu da garra epocal. Na fronteira de duas culturas, a da
Idade Média, que se aproximava do ocaso, e a Renascença, que entre nós foi sol
nado quando a vida do Poeta descaía, o seu espírito, por mais alto que lhe
ergamos a personalidade individualíssima, não pulsou nunca com a virtù, os anelos e a sensibilidade dos
platonizantes, dos ciceronianos, dos paganizados, dos eruditos e dos retóricos
que a revivescência das humanidades trouxe à actualidade (…).
A índole espiritual de Gil Vicente e
o teor das suas ideias nasceram e permaneceram na Idade Média, e só na Idade
Média – , bem entendido na derradeira quadra que a sensibilidade e o pensamento
medieval viveram entre nós (…).
Por isso a voz de Gil Vicente não
conheceu as galas do belo-dizer; as suas palavras brotaram do humus popular, recorrem às vezes ao vocabulário
clerical e nada pediram de emprestado ao latim polido; as suas imagens têm viço
e palpitam de ternura, sem a fatuidade e a bajulação vulgares nas dos
humanistas; o seu pensamento, ora ingénuo, ora intencional, antepôs ao
encadeamento de juízos a intuição imaginante do símbolo; as suas leituras
sérias foram as de um pregador e as das horas de desenfado parece não terem ido
além da literatura castelhana, especialmente dos novelistas e poetas da segunda
metade de Quatrocentos; o seu riso teve a alacridade irreprimível do que
irrompe visceralmente da gana, se delicia com a chalaça e esmorece com a
ironia; a sua razão não intuiu nunca aquele «livre exame» que submeteria à
mesma disposição categorial os textos sagrados e os eventos naturais; a sua
imaginação quase só delineou cenários de risco litúrgico e sempre enroupou de
panejamentos medievais os mitos e figuras da antiguidade clássica; a sua
concepção do Mundo foi teocêntrica, o seu ideal social, hierárquico, a sua
ética, a do asceta que, apesar de condescendente e bonacheiro, desnuda o homem
para que ele se não esqueça de que a vida tem de ser a preparação da morte.
O
saber científico, que se constrói com o senso rígido e frio da exactidão, não
lhe estava na índole, nem tão-pouco o visionou nos anos em que se alargam os
horizontes da visão intelectual. Somente aprendeu e soube o saber que nutre
directamente a conduta do homem para com Deus, para com o Rei e para com os
demais homens, e esse saber, que teve sempre por sustento e fito o mais
veemente amor a tudo quanto era português, encontrou-o já sistematizado em Sumas e Artes, e alcançou-o talvez numa
aula claustral para noviços ou aprendizes de clérigo, talvez numa escola
superior, como escolar teólogo, mas não com qualquer cura sertanejo e ainda
menos por exclusivo esforço de autodidacta.
Joaquim de Carvalho, “Os Sermões
de Gil Vicente e a Arte de Pregar”, in Obra
Completa, vol. II – História da Cultura, 1948-1955, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1983, pp. 45-47.
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