Recolha de entrevistas de F. Truffaut a A. Hitchcock (1966).
Hitchcock/ Truffaut, com a colaboração de Helen Scott, edição definitiva, Paris, Éditions Gallimard, 2014.
J’espère que vous garderez longtemps cette gravité du regard et cette façon
simple
et un
peu malheureuse de vous exprimer.
Jean
Genet, dedicatória a F. Truffaut escrita no Journal
d’un voleur
A dedicatória que François Truffaut forjou para o livro Hitchcock/ Truffaut, onde reúne a
monumental entrevista que fez ao mestre do suspense
em 1966, em Hollywood, coadjuvado pela sua amiga americana Helen Scott, e ao
qual chamou hitchbook, fazendo jus ao
lado criativo e espirituoso que o assistia (um traço de caráter comum aos dois
realizadores), reza assim: “Alfred Hitchcok a fait 53 films et une fille. Je
dédie ce livre à Patricia Hitchcock O’Connell”, segue-se a assinatura e a data
– outubro de 1983. Parafraseando Truffaut, poder-se-ia dizer que, no seu caso,
fez 21 longas-metragens, num universo de 26 filmes, e três filhas – Laura, Eva
e Joséphine. Hitchcock viveu 81 anos (1899-1980); Truffaut viveu apenas 52,
tendo, enquanto realizador, trabalhado durante 29, de 1954 a 1983. Desapareceu
no dia 21 de outubro de 1984, um domingo, dia em que, como diz a canção de Charles
Trenet, no filme L’argent de poche (1976),
“les enfants s’ennuient”.
Se Alfred Hitchcock e o seu cinema influíram
decisivamente na arte de François Truffaut, nomeadamente no que diz respeito ao
poder da imagem, ao protagonismo concedido às mulheres e a um certo tratamento
humorístico mesclado de ironia, outras ascendências benéficas existiram,
algumas delas desde a primeira infância. É o caso daquela sobrevinda da sua avó
materna, Geneviève de Monferrand, professora, apreciadora da cultura e dos
livros, e leitora compulsiva, com quem viveu dos três até cerca dos dez anos de
idade. Terá sido através dela que Truffaut desenvolveu o gosto pelas letras,
tendo, mais tarde, já a viver com a mãe e o padrasto, sentido a
necessidade de se embrenhar em universos ficcionais que lhe permitissem
evadir-se de um mundo que não via como seu e onde se sentia solitário e
indesejado. Este amor pela literatura, e em especial por Balzac, mesmo já
depois de ter enveredado pela carreira de cineasta, nunca se desvaneceu. Pelo
contrário, por vezes, é aos livros que recorre para lhes dar uma roupagem
fílmica (caso de Jules et Jim e de Les Deux Anglaises et le continent,
inspirados nas obras de Henri-Pierre Roché, ou de Fahrenheit 451, adaptação de um romance de Ray Bradbury, ou La Chambre verte, fruto da inspiração
colhida na obra L’Autel des morts, de
Henry James, ou ainda Vivement dimanche,
realizado a partir da obra de Charles Williams, The Long Saturday Night). Os livros, enquanto objetos, ocupam
também um lugar central na obra de Truffaut – impõem-se como adereços que
acompanham as personagens, ajudando a desenhá-las, como se verifica na saga
Antoine Doinel, em Jules et Jim, em Adéle H., em La Peau douce, ou no caso da personagem Bertrand Morane, não só
dono de uma considerável coleção de livros, como também escritor-amador que
chega a publicar. O amor pela literatura revelava-se em Truffaut também através
da escrita e das amizades que fez com grandes nomes das letras do seu tempo.
Era um homem que retirava prazer da escrita e, de entre os livros que assinou, a Correspondance é amiúde elogiada.
Frequentador assíduo das salas de cinema enquanto
adolescente, Truffaut, que afirmava conhecer Citizen Kane de cor, tinha em Orson Welles um novo modelo de
cineasta, com quem partilhava o gosto pela fragmentação narrativa e pela música
como recurso diegético. Jean Renoir terá sido outra das figuras tutelares para
Truffaut. Tanto o admirava que, em homenagem ao cineasta e ao seu filme Le Carosse d’Or, chamou à sua produtora,
criada em 1958 com a ajuda de Marcel Berbert e de Ignace Morgenstern, Les Films du Carrosse. De Renoir, a
importância dada às personagens e a vontade de mostrar realisticamente, fazendo
apelo ao olhar atento do espectador, a par da ideia de que o extraordinário
reside naquilo que o comum tem de mais profundo. Também Roberto Rossellini, realizador
de quem Truffaut foi assistente entre 1955 e 1957 e a quem chamava mon père
italien, fazia parte da sua galeria de figuras-referência. Com estes homens,
Truffaut aprendeu a fazer cinema.
É, todavia, André Bazin, teórico de cinema e diretor dos Cahiers du Cinéma, revista onde acolhe o
jovem François e onde o ensina a falar da Sétima Arte, orientando-o e levando-o
a colaborar nesta publicação, aquele que encabeça a lista dos pais espirituais
de Truffaut. Nos seus contributos para os Cahiers
du Cinéma, o crítico/ redator en herbe teve o ensejo de revelar a sua
admiração pelos realizadores americanos e de fazer análises e comentários
acerbos ao trabalho dos mais conhecidos cineastas franceses do momento, como
Claude Autant-Lara, Jean Delannoy, René Clément e Yves Allegret, intitulando-se
o seu mais polémico artigo, publicado em 1954, «Une certaine tendance du cinéma
français». Neste texto controverso, reclama o estatuto de autor da obra
cinematográfica para o realizador, inaugurando desta forma o movimento
artístico a que se chamou Nouvelle Vague
e que viria a revolucionar a maneira de fazer cinema.
Esta fase foi precedida por um período difícil para
Truffaut, marcado pela passagem pela prisão militar, na Alemanha, após uma
deserção. Em plena crise existencial, François Truffaut procurou a morte. Foi
salvo pela amizade de André Bazin e de Jean Genet, cujas cartas o iam ajudando
a sobreviver, dando-lhe ânimo e esperança numa nova vida. Resistiu e venceu. Depois
de ter procurado a morte, Truffaut começou desesperadamente a procurar o amor.
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