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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

FRANÇOIS TRUFFAUT II


Fanny Ardant e François Truffaut, durante a rodagem do filme La Femme d'à Côté (1981).
Imagem daqui.



Entendido tanto enquanto espaço como na sua aceção de expressão artística, o cinema foi para Truffaut a estrela polar que o conduziu desde a mocidade até ao fim dos seus dias. Enquanto não chegava o tempo de abraçar a Sétima Arte, para dar corpo aos medos e aos desejos que o assolavam e para enformar as ideias que havia defendido enquanto crítico de cinema, desfrutou dos espaços sacratíssimos que eram as salas escuras onde podia assistir uma e outra vez aos filmes que o arrebatavam; eles eram o seu alimento e a sua religião.

Atualmente, quem visionar a obra completa de Truffaut aperceber-se-á da presença de um leitmotiv, um motivo recorrente, que a atravessa: a vida, apresentada na sua polaridade de amor e de morte. Se Les Quatre Cents Coups é um filme centrado na problemática da infância, tal como L’Enfant sauvage, L’Argent de poche ou a curta-metragem Les Mistons, mostrando o realizador uma terna sensibilidade para com as crianças e o seu mundo, a tensão amor/ morte, nas suas variações de morrer de amores por alguém ou morrer por amor, está presente na configuração das questões atinentes ao universo feminino. Da mulher é traçado um retrato de um ser poderoso, se não mesmo fatal, dotado de uma força anímica que se sobrepõe à dos homens com os quais se relaciona. É o caso de La Peau Douce, La Mariée était en noir ou La Femme d’à côté, cujas protagonistas atingiram uma estação tão morbidamente exacerbada da paixão que apenas a morte as pode satisfazer. Aqui a morte é o desfecho natural do amor. Mas é a protagonista de Vivement dimanche que Truffaut, reverenciando as mulheres, dotou de uma inteligência superior à das figuras masculinas e de um flair detetivesco que não hesita em pedir meças aos profissionais da polícia. Aquela que no início do filme parecia poder ir pouco mais além de um papel secundário, não só resolve o mistério que dá corpo à intriga como manipula, com arte e sabedoria, o homem que ama com o intento de o salvar, acabando por conseguir essa façanha.

Ao topos do feminino e ao seu constante engrandecimento – elas são inteligentes e belas, quando não mesmo poderosas e fatais – não é indiferente a influência que as mulheres tiveram junto do realizador, para o bem e para o mal, e o fascínio que nele exerceram. Este é um domínio do seu trabalho estreitamente relacionado com a vida que viveu, por isso se pode dizer que Truffaut-cineasta, antes de nele se distinguir o realizador, é o homem mais as circunstâncias que rodearam a sua existência.

Embora prezasse as relações de amizade, tendo-as cultivado ao longo da vida junto de várias mulheres, Truffaut apaixonou-se com frequência pelas atrizes que escolhia para encarnarem as personagens principais nos seus filmes. Desta procura da beleza e do amor (Marsilio Ficino, 1433-1499, asseverava que "Quando noi diciamo amore, intendete desiderio di bellezza", na sua obra El Libro dell'Amore), numa tentativa de afastar a solidão que o havia perfilhado ainda menino, não estaria ausente nem a figura da Mãe, mulher bela e sedutora, nem a relação entre ambos, feita de desprezo e de ódio. Numa vida cuja entrada foi franqueada a tantas mulheres, numa tentativa, doce e inocente, de encontrar a figura da Mãe ideal, que não teve, Truffaut  inequivocamente sobrepôs o princípio do prazer ao princípio da realidade.

Como se o cineasta estivesse persuadido da impossibilidade de conquistar o amor absoluto ou, entendido de uma outra perspetiva, de alcançar o amor incondicional, o mesmo sentimento amoroso manifesta-se na sua obra com um quê de agridoce, ao qual se junta um travo a puxar para o amargo – o fel da morte que ora se insinua ora se revela nos finais de algumas das suas histórias, pondo-lhes um termo. Em L’Homme qui aimait les femmes é precisamente a circunstância de amar as mulheres, e a volúpia que retira ao contemplá-las, que arrasta o protagonista para a morte. No caso de Adèle H., história que se salda pela derrota do amor em todas as batalhas travadas pela protagonista que dá nome ao filme, não é da morte física que se trata – na verdade, a protagonista não desaparece, nem tão-pouco morre o ser que ela ama - , mas do apagamento desta figura feminina para o amor e, consequentemente, para a vida, permanecendo encarcerada ora na agonia do desvario ora numa espécie de torpor que dita a morte lenta, sem apelo. O amor seria assim a metáfora da fragilidade da vida humana, da impossibilidade de vencer a morte - aqui eros não foi mais forte que thanatos.


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