Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), Avant la corrida (1912)
Imagem daqui.
"Paris - 1908
Minha querida maman:
Hoje de manhan, quando os meus dedos rasgaram o envelope da sua carta, eu não esperava nada uma correção tão violenta.
Mas que fiz eu, minha Maman, para tão formidavel sova? - Eu não assassinei, não roubei, o proximo não se queixa de mim com razões e a minha consciencia todos os dias me diz que subiu mais um degrau de perfeição. Não quero com isto defender os meus erros, pois já nossos paes, os latinos, diziam «errare humanum est» - errar é humano.
Se eu lhe disser que os erros tem tanto valor como as virtudes, digo um sacrilegio aos seus ouvidos, mas afinal só pronuncio uma verdade. O erro é o fundo em que se destaca uma virtude, e a virtude seria inapreciada se o erro não existisse.
E de que me acusa a minha mãe? - De eu não ser a creatura que ella deseja. Porventura isto é uma falta propositada, voluntaria da minha parte? Não.
Ao contrário, eu queria bem ser o que ella quer que eu seja para lhe dar um maior grau de felicidade! Mas que fazer! Todas as creaturas vêm ao mundo para seguir um destino proprio. É por isto que todos os filhos dão às mães uma suprema felicidade e uma incomparavel dor. Uma felicidade porque são os filhos do seu ventre, uma dor porque são creaturas que ella não pode guiar na vida ao seu desejo.
Ah! e que acusações candidas me faz a minha maman.
Porque é que a minha vida tem sido todas um fiasco? Por não estar incorporado na firma R. Cunha? Por varios acontecimentos que me tem sucedido, e que eu tanto considero porque são lições de vida? Mas que haverá de fiasco na minha existencia?
Eu quando a consulto, acho-a, ao contrario, rasoavel e util porque consegui libertar-me dos meios de vida burgueza, tacanha de espirito e sentimento, em que eu estava embrenhado numa revolta. Neste ponto de vista eu sinto grandes duas creaturas que estavam a amparar-me e sinto-me grande eu proprio. Esses dois seres são meu Pae e minha mãe que me deixaram escolher livremente a minha forma de vida e me deram as mãos para ajudar os meus passos. Se eu não conseguisse livrar-me, se eu não vivesse na vida da arte, a vida de espirito e de alma, a suprema vida da perfeição, ah, minha mãe, eu, o seu filho. seria sempre um homem torturado, de existencia falha, e poderia então pronunciar tristemente: «a vida dum ser que eu creei, antes não houvesse creado - é um fiasco».
(...). A minha vida poderá ser para os outros qualquer coisa de idiota; eu porém estou convencido que vivo numa profunda vida de arte - e estou contente. (...)"
(Foi mantida a grafia original.)
Carta de Amadeo de Souza-Cardoso à mãe, Paris, 1908. Espólio da Família Sousa Cardoso. In Amadeo de Souza-Cardoso - Fotobiografia, catálogo raisonné, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p. 81-83.
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