Jean-Honoré Fragonard, (1732-1806), Le Colin-Maillard (1754-1756).
Imagem daqui.
“TER OU NÃO TER NAMORADO
Quem não tem namorado é
alguém que tirou férias remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das
conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de
adivinhação, (...) lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia.
Paquera, gabiru, flerte, caso, (...) envolvimento, até paixão é fácil. Mas
namorado de verdade é muito difícil. Namorado não precisa ser o mais bonito,
mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente
treme, sua frio, e quase desmaia, a pedir proteção. Esta não precisa ser
parruda ou bandoleira: basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição. Quem
não tem namorado não é quem não tem amor: é quem não sabe o gosto de namorar.
Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento, dois amantes e
um esposo; mesmo assim pode não ter nenhum namorado. Não tem namorado quem não
sabe o gosto de chuva, cinema, sessão das duas, medo do pai, sanduíche da
padaria ou drible no trabalho. (...) Não tem
namorado quem faz pactos de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer
pactos com a felicidade, ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de
curar. Não tem namorado quem não sabe dar o valor de andar de mãos dadas; de
carinho safadinho, escondido no escuro do cinema cheio, da flor catada no muro
e entregue de repente, de poesia de Fernando Pessoa, Vinicius de Moraes ou
Chico Buarque, lida bem devagar, de dar gargalhada quando se fala ao mesmo
tempo ou descobre a meia rasgada, de ânsia enorme de viajar junto para a
Escócia, ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo, tapete mágico ou foguete
interplanetário. (...) Não tem namorado quem não gosta de falar do
próprio amor nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos
olhos dele; abobalhados de alegria pela lucidez do amor. Não tem namorado quem
não redescobre a criança própria e a do amado e vai com ela a parques,
fliperamas, beira d’água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas
de sonhos ou filmes de Woody Allen. Não tem namorado quem não tem música
secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos, quem não se
chateia com o fato de seu bem ser paquerado. (...) Não tem namorado quem
nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada
ou no meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais. Não tem namorado
quem ama sem se dedicar, quem namora sem brincar, quem vive cheio de
obrigações; (...) Não tem
namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz. Não tem namorado
quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo. Se
você não tem namorado é porque não descobriu que o amor é alegre e você vive
pesando 200 kg de grilos e de medos. Ponha a saia mais leve, aquela de chita, e
passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a
alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado,
saia do quintal de si mesma e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de
caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenção de
queimar-se em seu próprio fogo e beba licor de contos de fada. Ande como se o
chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de
borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e
palavras de galanteio. Se você não tem namorado é porque não enlouqueceu aquele
pouquinho necessário para fazer a vida parar e, de repente, parecer que faz
sentido. «Enlou-cresça».”
Artur da Távola (1936-2008)
Joaquim
Ferreira dos Santos (org.), As cem
melhores crônicas brasileiras, Rio de Janeiro, Objetiva, 2007, pp. 244-245.
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