Imagem daqui.
"Ibne Amar encontrava-se numa situação análoga à de Jáfar ibne Iáhia (Barmeki) junto de (Hárune) Arraxide. Almutâmide acreditava nele nos assuntos mais importantes e julgava-o digno dos postos mais elevados. Por outro lado, Ibne Amar resolvia com acerto todos os assuntos que lhe earm encomendados e marcava-os com o seu selo como o ferro rubro ao fogo. Era bem conhecido em toda a Espanha. Até o rei cristão Afonso (VI), quando se pronunciava diante dele o nome de Ibne Amar, afirmava que era o homem mais excelente da Península. De feito, conseguiu impedir que tal príncipe conquistasse as cidades de Sevilha e Córdova e os seus territórios.
Desejoso de apoderar-se dos estados de Almutâmide, Afonso avançava à cabeça de um importante exército. O coração dos muçulmanos estava cheio de terror porque se sabiam demasiado fracos para poderem resistir. Então Ibne Amar recorreu à astúcia e empregou o estratagema mais engenhoso.
Mandou fazer um jogo de xadrez, magnífico tanto do ponto de vista da arte como da finura do seu acabamento, de tal modo que nenhum rei possuía outro igual. As peças eram de ébano, de aloés, e de sândalo com incrustações de ouro. E o tabuleiro era também uma maravilha de precisão. Provido deste xadrez e na qualidade de enviado de Almutâmide, apresentou-se a Afonso que encontrou à entrada do território muçulmano. O rei cristão recebeu-o da maneira mais honrosa e ordenou aos cortesãos que frequentassem a tenda do estrangeiro e velassem por que nada lhe faltasse. Um dia Ibne Amar ensinou xadrez a um dos cortesãos de Afonso, o qual falou dele ao seu senhor, grande jogador de xadrez.
Quando o príncipe recebeu a visita de Ibne Amar perguntou-lhe se era forte em tal jogo ao que o seu interlocutor respondeu afirmativamente. E era realmente um xadrezista de primeira qualidade.
- Disseram-me - replicou o príncipe - que tens um xadrez magnífico.
- É verdade.
- Como poderei vê-lo?
- Vou trazer-to - mandou responder Ibne Amar pelo seu intérprete - mas na condição de jogarmos ambos uma partida. Se ganhares, o jogo será teu; se perderes, poderei pedir-te o que quiser.
- Trá-lo para eu o ver - disse Afonso.
O vizir mandou-o buscar e apresentou-o ao cristão que exclamou persignando-se:
- Nunca imaginei que um jogo de xadrez pudesse estar tão bem feito. - E acrescentou voltando-se para Ibne Amar:
- O que é que dizias?
O muçulmano repetiu as condições que propusera.
- Não - disse Afonso -, não posso jogar. Não sei o que queres pedir-me, talvez uma coisa que não te possa dar.
- Não jogarei noutras condições - respondeu Ibne Amr. E mandou embrulhar de novo o xadrez e levá-lo para a sua tenda.
O vizir revelou, porém, a alguns cortesãos cristãos, sob promessa de segredo, o que exigiria a Afonso no caso de ganhar a partida. E obteve a sua ajuda mediante somas importantes.
Como a recordação do xadrez obsessionava o príncipe, consultou os seus favoritos sobre as condições que Ibne Amar queria impor-lhe.
- É coisa pouca - responderam. - Se ganhares, terás o xadrez mais formoso que um rei pode possuir. Se perderes, que pode pedir um adversário teu que um rei como tu não possa cumprir? E se exigir uma coisa impossível, não estamos nós prontos a pormo-nos do teu lado para o fazer entrar na razão?
Insistiram com tanto êxito que Afonso mandou vir Ibne Amar com o seu xadrez e disse-lhe que aceitava as suas condições.
O vizir pediu então que se chamassem alguns nobres que designou como testemunhas. Afonso mandou-os vir e começou a partida. Mas, dissemo-lo já, Ibne Amar era um tal jogador que ninguém lhe podia ganhar no Andaluz. E ante os olhos dos cortesãos bateu completamente o seu adversário. Quando o resultado da partida não ofereceu dúvidas, Ibne Amar disse:
- Ganhei o que tínhamos combinado?
- Sem dúvida. O que pedes?
- Que saias desta terra e entres na tua.
Afonso empalideceu, sentiu-se preso de uma grande agitação e entre outras coisas disse aos seus favoritos:
- Aqui está o que eu temia. E vós a tranquilizar-me...
Por um instante perguntou-se a si mesmo se cumpriria a sua palavra e não continuaria a campanha, mas as pessoas do seu séquito fizeram-lhe ver a vergonha que seria o maior rei cristão da época atraiçoar a sua promessa. E insistiram com tanto acerto que acabou por se acalmar. Exigiu, no entanto, que naquele ano pagassem o dobro do tributo ordinário. Ibne Amar aceitou e mandou entregar a soma pedida a fim de conseguir a retirada imediata de Afonso. Graças à prudente e hábil conduta do vizir, Alá soube colocar assim os muçulmanos ao abrigo da violência dos cristãos. E Ibne Amar voltou a Sevilha para junto do seu senhor a quem achou encantado por tão feliz sucesso."
António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, vol. 2: História, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, pp. 225-226.
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