Astrolábio
“Ainda
ontem eu pensava que nós outros os peninsulares nem sempre tínhamos sido uma
nação estreita, de pequenas tendências, sonolenta, chata, fria, burguesa, cheia
de espantos e servilidades: e que este velho canto da Terra, cheio de árvores e
de sol, tinha sido pátria forte, sã, viva, fecunda, formosa, aventureira,
épica!
Ah! Foi há
muito tempo.
Era naqueles
tempos em que a Itália rodeava os papas severos; e olhavam para o céu as
Virgens do Dominiquino. Por esse tempo ia pela Europa uma transformação social.
Na Alemanha, Lutero entrava em Worms, com um canto batalhador, em nome do
espírito, da alma. O papado ia morrer. (…)
Todo o
Sul católico estremeceu: aquela revolta vinha imprevista e rápida: um dia a
imperceptível e vasta humanidade, quando fosse uma madrugada para as suas
adorações, podia encontrar a velha Roma deserta, e ao longe o Catolicismo
dissipando-se com um som hierático de salmos, e um colorido vermelho de
fogueiras.
Era necessário
salvar o Sul. (…)
Ora durante
essa luta das religiões e das pátrias, a Península, encolhida nas suas
montanhas, coberta de sol, violenta, sinistro cavaleiro de Deus, armava as
caravelas e os galeões para as bandas desconhecidas das ilhas, dos continentes
das Índias, dos cabos temerosos. Nós outros, os peninsulares, aparecíamos às
outras nações como velhos lobos do mar, sempre em viagem, trigueiros, rijos
como calabres, sãos como o sol, ensurdecidos pelo clamor das marés, cheios de
legendas, e do cheiro das viagens, sobre os tombadilhos, e perdidos, ao longe,
perdidos nas brumas terríveis.
De vez em
quando desembarcava este povo, bradando que tinha descoberto um mundo, que lá
tinham ficado infinitas multidões, negras, bestiais e nuas sob a bênção dos
padres: ali mesmo sobre a areia, ao rumor das maresias, escrevia a história trágica
da sua viagem, e uma madrugada, tomados das saudades do mar, partiam de novo,
radiosos e bons, para a banda das Índias. (…)
Escreviam-nos
entre os assaltos e as tempestades, no convés das caravelas, nos cabos
tormentosos, nas florestas sagradas (…) sob as imobilidades cruas da luz:
escreviam cobertos das espumas, enegrecidos pelos fumos, trémulos das iras das
batalhas. Por isso enchiam as suas crónicas e os seus poemas de uma estranha
prodigalidade de força e de vida. (…)
Mas eles
também tinham amores, ciúmes, paternidades, paixões, lirismos interiores, e as
saudades da pátria nasciam naquelas almas como grandes açucenas que se abrem
dentro de um vaso e que o enchem. (…)
Estavam longe
da Europa, das plásticas da Itália, dos renascimentos gregos e romanos, das
antigas formas rituais, das educações clássicas.
Não conheciam
isto.
Mas lembravam-se
sempre das cantigas da pátria, das endechas heróicas, dos romances populares,
que eles tinham ouvido pelos campos, com que os velhos embalavam, que se cantam
à noite às estrelas por Sevilha e por Granada e que os mendigos diziam pelas
velhas pontes dos Godos e dos Árabes. Porque o povo na Península tinha uma
poesia, sua exclusivamente, que cantava nos trabalhos, com que adormecia os
filhos, em que escarnecia os alcaides e celebrava os heróis. (…)
Em Portugal
(…) há mais serenidade na força: o carácter português é mais parecido com o
carácter italiano: os nossos sábios, os nossos viajantes, os nossos
descobridores tinham mais a lucidez do tempo de Dante: as navegações são prudentes:
por isso Portugal não resistiu nada à influência italiana. O renascimento da
Antiguidade, a serenidade plástica, a frieza clássica aclimatam-se na Espanha
mas com dor e com luta: foi necessário que a Espanha já não acreditasse na sua
epopeia cavalheiresca e que Cervantes começasse a fazer trotar pelos caminhos o
magro D. Quixote.
Em Portugal
não: o génio antigo aclimatou-se: transformou-se mesmo: perdeu o elemento vital
e fecundo e ficou-lhe o elemento retórico. (…)”
Eça de Queirós, Prosas Bárbaras, Lisboa, Edição Livros
do Brasil, s/d, pp.145-152.