Baptista-Bastos (Lisboa, 1934)
Imagem daqui.
“Entre a
malta do meu bairro de menino, o Vitinha ficou sempre no retábulo dos
intocáveis. Tinha sobre todos nós a vantagem dos olhos azuis, dos caracóis
loiros e do dinheiro aos domingos, para o cinema e os rebuçados. No pátio da
Surda, que era o centro do nosso universo, o sítio onde se conspiravam as
púrrias, se contavam histórias, se fumavam cigarritos sorrateiros, no pátio da
Surda, Vitinha tinha lugar de cabeça. Os pais compravam-lhe revistas com
bonecos desenhados, e ele tinha um fato à maruja e boné branco com pom-pom
vermelho. Quando vínhamos da escola parávamos por ali: Naftalina, o
Descasca-Milho, o Necas Bexiga, o Dá-e-Foge, o Pingado e eu. Eu era o
Transparente. Vitinha era o Vitinha. Intocável. Sem alcunha e intocável. Quando
os rapazes das outras ruas puxavam os caracóis do Vitinha, logo a malta
organizava uma púrria. Quando o Vitinha caiu pelas Escadinhas do Monte e partiu
a tola, fomos todos vê-lo a casa. Quando o Vitinha bateu no filho do Zé Caroço
demos uma tareia no filho do Zé Caroço. Quando o Vitinha roubou um ananás da
porta da mercearia do Meireles, confessei-me culpado.
Feita a
quarta classe, os nossos pais decidiram que já sabíamos muito.
Ficámos contentes
com a responsabilidade de ser homens e fomos cada qual à nossa vida. Vitinha para
o liceu. Uns continuaram no bairro; outros atravessaram a fronteira da rua
antiga e foram para ruas novas, descobrindo a cidade. Vitinha cortou os
caracóis, mas permaneceu de cabelos loiros e de olhos claros. Namorou a Amélia,
que trabalhava na costura com a Dona Maria dos Remédios, e casou com uma
rapariga alta da Faculdade. «Parabéns, Vitinha», dissemos todos sorridentes e
felizes quando o anjo intocável lá foi com a noiva, num automóvel negro e
imenso. Falámos sempre no Vitinha, no decorrer dos anos. Era o único doutor do
bairro, e a nossa glória conseguida. Foi presidente de sociedades, discursou em
actos onde se proclamavam princípios, lá apareceu nos jornais, cheio de
condecorações com o ar grave de quem medita e de quem serve. «O Vitinha. Vejam o
Vitinha. Aquilo é que é um homem, um grande homem.» Dizíamos isto uns aos
outros, os antigos rapazes do bairro, muito contentes pelo seu destino
irretorquível.
Aqui há
semanas perdi o emprego, e aqui há dias a minha mulher, a Amélia, disse-me:
«Vai ao Vitinha, homem; ele sempre há-de arranjar qualquer coisa.» Bela ideia.
À noite disse aos amigos: Amanhã vou ver o Vitinha. Vou falar com ele…
Todos ficaram
alegres. «Dá lá recomendações, pá», disse o Naftalina. «Não te esqueças»,
avisou o Necas Bexiga.
No outro
dia, lá fui ao prédio alto.
Disse o
meu nome à empregada do consultório, ela desapareceu por uma porta, e voltou
quase a seguir: «O sr. dr. pergunta se o seu assunto é urgente, se não pode
esperar uns dias.»
Interrompi
a empregada: «Olhe, diga ao sr. dr. que está aqui o Transparente.» Era uma
invenção súbita, uma sigla que a rapaziada da antiga confraria entendia
abertamente. Ela voltou e disse: «Desculpe, mas o sr. dr. manda dizer que não o
conhece»…”
Baptista Bastos, “Então que é isso
ó Vitinha?!...”, in Contos e Crónicas de
Expressão Portuguesa, Paris, Langues pour Tous – Pocket, 2004, pp.28-32.
Quantos personagem tem o texto .
ResponderEliminarQual é o tipo de narrador deste texto
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ResponderEliminarQuais são os protagonista do texto
ResponderEliminarPorque Vitinha era consideranda intocável
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