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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 10 de abril de 2013

RETRATO DE VITINHA


Baptista-Bastos (Lisboa, 1934)
Imagem daqui.



“Entre a malta do meu bairro de menino, o Vitinha ficou sempre no retábulo dos intocáveis. Tinha sobre todos nós a vantagem dos olhos azuis, dos caracóis loiros e do dinheiro aos domingos, para o cinema e os rebuçados. No pátio da Surda, que era o centro do nosso universo, o sítio onde se conspiravam as púrrias, se contavam histórias, se fumavam cigarritos sorrateiros, no pátio da Surda, Vitinha tinha lugar de cabeça. Os pais compravam-lhe revistas com bonecos desenhados, e ele tinha um fato à maruja e boné branco com pom-pom vermelho. Quando vínhamos da escola parávamos por ali: Naftalina, o Descasca-Milho, o Necas Bexiga, o Dá-e-Foge, o Pingado e eu. Eu era o Transparente. Vitinha era o Vitinha. Intocável. Sem alcunha e intocável. Quando os rapazes das outras ruas puxavam os caracóis do Vitinha, logo a malta organizava uma púrria. Quando o Vitinha caiu pelas Escadinhas do Monte e partiu a tola, fomos todos vê-lo a casa. Quando o Vitinha bateu no filho do Zé Caroço demos uma tareia no filho do Zé Caroço. Quando o Vitinha roubou um ananás da porta da mercearia do Meireles, confessei-me culpado.
Feita a quarta classe, os nossos pais decidiram que já sabíamos muito.
Ficámos contentes com a responsabilidade de ser homens e fomos cada qual à nossa vida. Vitinha para o liceu. Uns continuaram no bairro; outros atravessaram a fronteira da rua antiga e foram para ruas novas, descobrindo a cidade. Vitinha cortou os caracóis, mas permaneceu de cabelos loiros e de olhos claros. Namorou a Amélia, que trabalhava na costura com a Dona Maria dos Remédios, e casou com uma rapariga alta da Faculdade. «Parabéns, Vitinha», dissemos todos sorridentes e felizes quando o anjo intocável lá foi com a noiva, num automóvel negro e imenso. Falámos sempre no Vitinha, no decorrer dos anos. Era o único doutor do bairro, e a nossa glória conseguida. Foi presidente de sociedades, discursou em actos onde se proclamavam princípios, lá apareceu nos jornais, cheio de condecorações com o ar grave de quem medita e de quem serve. «O Vitinha. Vejam o Vitinha. Aquilo é que é um homem, um grande homem.» Dizíamos isto uns aos outros, os antigos rapazes do bairro, muito contentes pelo seu destino irretorquível.
Aqui há semanas perdi o emprego, e aqui há dias a minha mulher, a Amélia, disse-me: «Vai ao Vitinha, homem; ele sempre há-de arranjar qualquer coisa.» Bela ideia. À noite disse aos amigos: Amanhã vou ver o Vitinha. Vou falar com ele…
Todos ficaram alegres. «Dá lá recomendações, pá», disse o Naftalina. «Não te esqueças», avisou o Necas Bexiga.
No outro dia, lá fui ao prédio alto.
Disse o meu nome à empregada do consultório, ela desapareceu por uma porta, e voltou quase a seguir: «O sr. dr. pergunta se o seu assunto é urgente, se não pode esperar uns dias.»
Interrompi a empregada: «Olhe, diga ao sr. dr. que está aqui o Transparente.» Era uma invenção súbita, uma sigla que a rapaziada da antiga confraria entendia abertamente. Ela voltou e disse: «Desculpe, mas o sr. dr. manda dizer que não o conhece»…”
Baptista Bastos, “Então que é isso ó Vitinha?!...”, in Contos e Crónicas de Expressão Portuguesa, Paris, Langues pour Tous – Pocket, 2004, pp.28-32.

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