Alcaparreira em flor.
“Foi
através da língua portuguesa, e no cenário sem par do Alentejo, que me procurei
e me descobri e, muito jovem, ainda adolescente, nasci escritor. Nos meus
primeiros exercícios da palavra, que eram necessariamente milimétricos, em boa
parte, havia já cinquenta por cento, ou mais, de vontade cognitiva, e o resto
de exercício lúdico. Curiosamente, duas linhas quase opostas começavam a
desenhar-se nesses meus primeiros textos ingénuos: a do encantamento perante a
vida e a natureza e a da revolta ou, para ser mais exacto, da indignação face à
injustiça que me rodeava.
Ao longo
da existência fui conquistando outras línguas, que me deram acesso a outras
culturas e a outros esquemas mentais. Mas só no universo sonoro da língua
portuguesa a minha pena se movia, se comovia. Vocábulos como Sol, encarnado,
Irisalva, almocreve, alcaparra ou alguidar enchiam de luz os meus ouvidos,
particularmente sensíveis à faculdade onomatopaica de certas palavras. Desde muito
cedo, ainda criança, me dei conta de que o pensamento só pode ser apreendido na
língua, embora esta, como continente, não se possa sequer imaginar sem o seu
conteúdo, a ideia das coisas. Veículo e estímulo do pensamento, matriz do meu
estar no mundo, do meu modo de o entender.
A língua,
evidentemente, é de todos, embora pertença mais a uns do que a outros,
consoante o grau de conhecimento do real que nela, e por ela, lograram
adquirir. Mesmo entre os escritores há grandes variações, desde a concisão e a
austeridade lexical desse realismo da subjectividade em que Stendhal foi mestre
à riqueza conotativa do mundo verbal flaubertiano. Nas literaturas de língua
portuguesa, as que de momento nos importam, é ainda maior a distância entre o
caudal vocabular e sintáctico dos grandes clássicos, à excepção de Camões, que
rompeu a barreira de vários códigos limitativos, e as línguas de autor,
prodigiosamente amplas e fecundas, de um Aquilino Ribeiro, de um Guimarães
Rosa, de um Luandino Vieira.
O amor à
língua, à língua mãe, instrumento de ofício, escada para o paraíso e para os
infernos, passa não só pelo culto do rigor, da precisão, mas ainda pela
violência apaixonada com que poetas e prosadores a subvertem e a transformam. É
o povo, decerto, quem faz a língua, quem a vai, dia a dia, empurrando para o
futuro, mas o escritor deixa nela as suas marcas, participa na sua viagem, nos
seus acidentes, cria-lhe ele próprio meandros, contornos. É o trabalho exercido
sobre a língua que dá ao texto a transparência que o abre à comunicação ou a
opacidade que lhe confere o mistério, o poder encantatório.”
Urbano Tavares
Rodrigues, A Natureza do Acto Criador,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011, pp.9-11.
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