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A nua verdade
De vez em quando, não fica mal ao cronista subir para a Máquina do Tempo, mover as alavancas adequadas e instalar-se no passado. Bem sabemos todos que o futuro vem aí a galope e traz muito que contar. E também sabemos que neste país, tão apegado a tradições, velharias e preconceitos bolorentos, há, paradoxalmente, uma irresistível inclinação para nos acusarmos uns aos outros de saudosistas. Daí que eu me sinta um tanto receoso do grave passo que vou dar. Se ele há tanta coisa moderna a pedir que dela falem - que ideia é esta de pôr o calendário a andar para trás, por aí fora, até.
Até à primeira metade do século XV, aos tempos do Senhor Rei D. Duarte, do Regente D. Pedro e de D. Afonso VI, o Africano. Um grande salto, como se vê. Não que eu esteja interessado em vir fazer aqui qualquer reconstituição histórica. Mais modesto propósito me moveu, o qual vem a ser procurar, na pequena Lisboa do tempo, o guarda-mor da Torre do Tombo, um homem sisudo chamado Fernão Lopes. Quero também, e logo verei se posso, saber com que ingredientes se compôs a tinta da Crónica de D. João I.
Este livro é para mim uma obsessão, uma ideia fixa. Cá no século XX em que vivo, corro estas páginas de bárbara ortografia, esta abundância de vogais e consoantes dobradas, estas palavras que dizem mais do que parece - e fico atordoado, como quem está no sopé de uma altíssima coluna, ou árvore, ou montanha a pique, e ergue os olhos para a vertiginosa ascensão, e logo os baixa porque a vertigem é real. Por isso vou saber (saberei?) quem é este Fernão Lopes e em que tinteiro molha a pena para escrever, mesmo no prólogo da sua crónica, esta grave advertência: «Nem emtemdaaes que certeficamos cousa, salvo de muitos aprovada, e per escprituras vestidas de fe; doutra guisa, ante nos callariamos, que escprever cousas fallssas.»
Vejo um homem de rosto severo, não porque à alegria se tenha recusado, mas porque a matéria de que trata é carne e sangue de homens. Porque tem diante dos olhos o latejar de um povo e nada quer perder dos arrebatamentos, das paixões, dos gestos egoístas, das cobardias, e também da coragem que é de repente maior do que o ser em que se instalou. Porque se é certo que vai contar a história de príncipes e seus vassalos, dos conluios de palácio, das grandes frases para a posteridade e das breves interjeições da raiva e da dor - também é verdade que pelas estreitas janelas da torre chegam as palavras quotidianas e toscas dos «ventres ao sol» - massa dispersa que num momento da história se tornou lança e aríete, escudo e hora da manhã.
Vejo este homem, leio o que ele está escrevendo, e pergunto: «Quem te conhece, Fernão Lopes? Quem saberá que nesta sala, entre códices antigos, nasce neste momento talvez o maior livro da literatura portuguesa?»
Vejo este homem, agora que o sol se pôs e uma candeia mortiça sufoca entre as sombras da noite, a esfregar os olhos cansados, a empurrar a pena vagarosa para contar os padecimentos de Lisboa: «No logar hu costumavom vender o triigo, amdavom (...) moços esgaravatamdo a terra; e sse achavom algu
ũs graãos de triigo, metiãnos na boca sem teemdo outro mantiimento; outros se fartavõ dervas, e beviam tamta agua que achavom mortos (...) cachopos jazer imchados nas praças e em outros logares.»
Meu velho e amado Fernão Lopes, desprezado génio cujo nome por muito favor penduraram na esquina de uma rua ali ao Saldanha. Quando na tua linguagem sem adjectivos querias fazer e fazias o elogio de um homem, ao nome dele e à palavra homem acrescentavas apenas: e para muito. Fernão Lopes, cronista da nua verdade, homem para muito - digo eu, neste tempo de tão pouco."
José Saramago, "«A nua verdade»", in Deste Mundo e do Outro, (crónicas publicadas, pela primeira vez, no jornal A Capital - 1968-1969), 2ª edição, Lisboa, Caminho, s/d, pp. 171-173.