«Neste mesmo dia, Simão de Sá conduziu Jorge de Barros à sua livraria. Como reposteiro à porta da biblioteca, via-se um painel, que figurava o Sermão da Montanha, quadro fraudulento com que o hebreu edificava os hóspedes cristãos. O quadro enrolou-se, quando o dedo de Simão carregou na cabeça dourada do prego em que o painel impendia. Descobriu-se um espaço de parede coberta de arrás como o restante da saleta. O hebreu acurvou-se: carregou noutra mola, que fez subir enrolada uma espécie de cortina.
- Aqui tem os meus livros, senhor Jorge. Muitos não lerá, que são hebraicos; mas deles há muitos em latim, castelhano e português. Aqui tem O Livro da Fé Demonstrada pela Razão, de Scem Tou de Leão. Aqui tem O Livro dos Justos, de Samuel Chasid, impresso em mil quinhentos e oitenta e um. Este é o Pão das Lágrimas, de Samuel Ozeda de Saphet. Aqui tem o Talmude compendiado por Salomão Luria, e a Lâmpada de Ouro, do mesmo escritor. Aqui tem a Justiça dos Séculos e mais dezasseis volumes do judeu português Isaac Abravanel, descendente de David, nascido em Lisboa em mil quatrocentos e trinta e sete, e falecido em Veneza por mil quinhentos e oito, quando ali fora conciliar os portugueses com os venezianos. Aqui está o Facho do Preceito e mais seis volumes do israelita português Joseph Ben Don David Ben Don Joseph Abem Jachiia, falecido na Itália em mil quinhentos e quarenta e nove. Estoutro é o O Livro da Luz, do hebreu português Jos Ciiahu. Agora lhe ofereço um livro do meu ascendente Abraão de Ferrara que exercitou a medicina em Lisboa. Lindíssimo é essoutro livro de Abraão Sabua, também português: chama-se o Ramalhete de Mirra. Aqui está o celebrado comentário sobre o Pentateuco, do médico do Porto, chamado Menachem Porto, pai do grande cabalístico Abraão Ben Sechiel Cohen Porto, cujas Aldeias de Jair (Chavot Jair) lhe ofereço, como leitura encantadora. Finalmente, senhor Jorge de Barros, aí estão mil volumes de escritores judaicos. Não lhe aconselho que leia os enfadonhos escrutadores da cabala, que são absurdos, sem serem ridículos. Os livros de moral parecem-me excelentes, mormente os que procedem dos terapeutas e caraítas. Nem Sócrates antes, nem Saulo ou Paulo depois, escreveram melhor.
Começou Jorge a sua leitura pelo Pão das Lágrimas.
Sara e Judite, filha de Simão, sentaram-se uma de cada lado da cadeira do moço e ouviam-no. Era um quadro mimoso para pintura!»
Camilo Castelo Branco, O Judeu, Silveira, E-Primatur, 2016, pp. 61-62.
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