Rio Mondego, Coimbra, vista a partir da Ponte de Santa Clara.
Imagem daqui.
"Coimbra, 11 de Dezembro (de 1950) - Não há dúvida: - A poesia portuguesa dividiu-se. A um grande rio barrento veio desembocar um corgo cristalino. No mar do esquecimento que espera todas as realizações humanas, talvez se juntem e desapareçam. Mas até lá, vê-se nitidamente a fronteira das duas águas. Foi uma graça formal, uma economia de meios, uma modernidade de imagens e de sensações que vieram arejar uma retórica de comício, um sentimentalismo piegas, um bombeirismo arcádico, que desgraçadamente têm fundas raízes no nosso temperamento.
Embora tardiamente, também ao luso Parnaso chegou um pouco do gosto, do arrojo e da força renovadora que são a glória de Baudelaire.
A marca literária dos tempos presentes é o desejo incansável de uma originalidade a todo o preço. E sendo certo que é melhor possuir a originalidade do que procurá-la, em última análise o que importa é encontrá-la nas obras. O que felizmente vai acontecendo por cá.
Caudalosa, porém, a velha corrente recusa-se a considerar sequer a transparência que a margina. Fiéis ao passado, teimosamente antediluvianos, certos nomes com prestígio insistem na sua impetuosa cegueira, ou porque realmente não podem, ou porque verdadeiramente não querem ver a perdição. Um refluir incansável e trágico do mau gosto ancestral apoia-os, de resto, com pertinácia. É ver o que se passa neste momento: - Ainda a aura benéfica de Fernando Pessoa está a crescer, e já se aperram as pistolas contra ela.
Seja como for, os dados estão na mesa; digam o que disserem, não há despeitos impotentes que apaguem na pedra a marca de certas presenças. O rio barrento tem à perna um espelho de claridade..."
Miguel Torga, Diário V, Coimbra, edição do autor (revista), s/ d, pp. 172-173.
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