"RECONSTITUIÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas
acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café. Elas picam cebolas e
descascam batatas. Elas migam sêmeas e restos de comida azeda. Elas chamam
ainda escuro os homens e os animais e as crianças. Elas enchem lancheiras e
tarros e pastas de escola com latas e buchas e fruta embrulhada num pano limpo.
Elas lavam os lençóis e as camisas que hão-de suar-se outra vez. Elas esfregam
o chão de joelhos com escova de piaçaba e sabão amarelo e correm com os
insectos a que não venham adoecer os seus enquanto dormem. Elas brigam nos
mercados e praças por mais barato. Elas contam centavos. Elas costuram e enfiam
malhas em agulhas de pau com as lãs que hão-de manter no corpo o calor da
comida que elas fazem. Elas vêm com um cântaro de água à cinta e um molho de
gravetos na cabeça. Elas limpam as pias e as tinas e as coelheiras e os
currais. Elas acendem o lume. Elas migam hortaliça. Elas desencardem o fundo
dos tachos. Elas passajam meias e calças e camisas e outra vez meias. Elas
areiam o fogão com palha de aço. Elas calcorreiam a cidade a pé e à chuva
porque naquele bairro os macacos são caros. Elas correm esbaforidas para não
perder o comboio, o barco. Elas pousam o cesto e abrem a porta com a mão
vermelha. Elas põem a tranca no palheiro. Elas enterram o dedo mínimo na
galinha a ver se tem ovo. Elas acendem o lume. Elas mexem o arroz com um garfo
de zinco. Elas lambem a ponta do fio de linha para virar a camisa. Elas enchem
os pratos. Elas pousam o alguidar na borda da pia para aguentar. Elas arredam a
coberta da cama. (…)”
Dezembro 1975
Maria Velho da Costa, Cravo, Moraes Editores, 1976.
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