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Escola Secundária José Saramago - Mafra

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

DA SAUDADE XV

City is Landing, Jacek Yerka. Daqui.


"O messianismo português, que é diverso dos anteriores milenarismos, como os de Joaquim de Flora, ou Fiore, dado que assume um modelo de império, não redutível ao fim da história, mas antes como um fim que vem depois do fim, para utilizarmos as palavras de Dominique Roux. O messianismo bandarrista serve de semente para o mito do Quinto Império e alimenta o chamado sebastianismo. Com efeito, entre 1530 e 1540, surgem umas Trovas de Gonçalo Anes, de alcunha o Bandarra, sapateiro de Trancoso, que falam Desse bom Rei Encoberto que Tirará toda a Erronia/ Fará Paz em todo o Mundo. As Trovas, que serão julgadas como judaizantes pela Inquisição, servirão, contudo, de elemento fundamental para a estratégia de resistência dos que se opunham à administração filipina e tratavam de lançar achas para a fogueira do messianismo sebastianista, procurando transformar aquele que fora O Desejado num Encoberto. É, a partir de então, que se estrutura o mito do Quinto Império como uma religião política, como a integração simbólica de um povo, segundo as palavras de Jürgen Moltmann. É o que acontece a todas as nações que se auto-interpretam como nações metafísicas, em contraste com as chamadas nações empírico-etnográficas. Todas as nações que se assumem de um ponto de vista transcendental, representando diversos espaços histórico-geográficos de uma só e mesma nação. Daí a sua atracção e repulsão recíprocas, como salienta o recente filósofo russo Nikolai Chulguine, referindo-se... à Rússia. A ascensão e queda de Portugal nos séculos XV e XVI é fulminante. Do reino antigo, rapidamente se passa ao novo reino, sonhando-se com o Império, ao mesmo tempo que o rei, nos fins de 1576, começos de 1577, deixa de ser Alteza e se assume como Majestade, abandonando a coroa aberta do reino e alcandorando-se à coroa fechada e circular do soberanismo monárquico. Pouco tempo depois, com a derrota de Alcácer-Quibir em 1578, passa-se abruptamente, da suprema esperança, aos amargos da derrota. Os mitos da augmentação aparecem, assim, incidivelmente ligados aos mitos da decadência. Como observa Garcia de Resende: Era Portugal o cume/ Agora por mau costume/ Se perdeu em poucos anos. No cume, na procura do Império, a degenerescência dos costumes, a corrupção do corpo político e a falta de autenticidade do poder, que geram a necessidade de se plantar novo reyno, novos homens, novas Leys, novos costumes, como expressa D. Álvaro de Castro, em carta ao Cardeal D. Henrique. Um novo reino que, de certa maneira, procura retomar os antigos hábitos. Como se expressa o povo em Cortes, há uma enorme diferença entre o estado a que somos vindos e quão diferentes nas vidas e nos costumes daqueles Portugueses antigos, usando de tamanhos excessos nas jóias, nos comeres, nos adereços de nossas casas e nos exercícios de nossas vidas. Mas é deste choque que surge o típico da consciência nacional portuguesa, fundada na procura da regeneração e da refundação, onde, muito messianicamente, a memória do sofrimento constitui o principal alento para o desejo de libertação. (...) Sebastianistas continuam a ser aqueles que consideram que Portugal não é apenas aquele Portugal que permaneceu no Portugal dos séculos XV e XVI. Que há outros novos portugais além do Portugal Velho. Novos portugais que os genes e os sonhos dos sucessivos portugueses semeiam pelo mundo. Que há outros portugais sem o nome de Portugal e que constituem aquilo que Gilberto Freyre (1900-1987) qualificou como o mundo que o português criou. Neste sentido, Pessoa disse que falta cumprir-se Portugal, que a nossa missão é o impossível do conquistemos a distância, do mar ou outra, mas que seja nossa. Têm, pois, razão Alexandre Herculano, António Sardinha (1888-1925), António Sérgio (1883-1969) ou Agostinho da Silva (1906-1994) quando apontam certas facetas do renascimento como a primeira das causas da nossa decadência. Liberdadeiros, tradicionalistas, racionalistas ou esotéricos, uns simplesmente liberalistas, outros monárquicos, outros socialistas, outros republicanos, todos reconhecem que a decadência foi deixarmos de cumprir a liberdade portuguesa. Mas o Renascimento é um desses deuses com duas faces. Se uma aponta a decadência, a outra escreve-se com a esperança camoniana. 1580 constitui, de facto, um marco assinalado pelas lendárias palavras de Camões: morro, mas morro com a pátria. Não que a pátria tenha perecido, dado que o sofrimento, provocado pela consciência da ocupação, gerou o desejo de libertação. Ela volver-se-á em algo que se perde entre as brumas da memória, algo que nos é segredado pela voz dos egrégios avós, tornando-se saudade, ou messianismo, ou tentando transformar-se num imortal que tem de ressurgir, obrigando os vindouros ao esforço de levantar hoje de novo o esplendor de Portugal, conforme as palavras daquele que será o chamado hino nacional. Todo o patriotismo português será saudade e memória a partir de então, exigindo um esforço interior de refundação ou regeneração. (...)"

José Adelino Maltez, Abecedário Simbiótico - Um digesto político contemporâneo com exemplos sagrados e profanos, Entrada "Quinto Império", Lisboa, Campo da Comunicação, 2011, pp. 433-435.



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