Júlio Pomar (1926-2018), Lusitânia no Bairro Latino (retratos de
Mário de Sá-Carneiro,Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso), 1985.
Imagem daqui.
JÚLIO POMAR: PINTOR
Os antigos, que de acordo com o conhecimento comum eram criaturas sábias, ao desenharem os continentes que lhes iam aparecendo reproduziam o contorno da costa, escreviam-lhe por cima
        aqui há leões
      e resolviam o assunto de uma penada. A seguir vinham outros antigos mais recentes que lhes aperfeiçoavam os bonecos e iam enxotando a ideia dos leões para o interior da terra, de tal modo que hoje, modernos que somos, e tirando a excepção amável dos Jardins Zoológicos
        (...)
      os leões habitam apenas nos mundos muito secretos do interior da vida, que é o lugar onde os artistas trabalham. Às vezes a gente pensa que eles, os artistas, estão ao pé de nós e não estão nem meia: quer dizer, parte deles está ali, a conversar, a comer, a rir-se, sossegadinho da silva, e o resto, que é tudo, anda por Atlântidas difusas a enxotar leões até ficar a ilha clara, a linha da costa como deve ser, a geografia do mundo a descoberto.
        Júlio Pomar pertence a esta espécie de criaturas raras: traz a gente à luz do dia com o camaroeiro da palma. Há alturas em que penso nele como num parteiro: está ali, vamos supor, um corpo só corpo, ele enfia o braço, dá voltas e mais voltas com os pincéis , ou o carvão, ou o que lhe der na gana, em grutas muito escuras, e pranta diante do pessoal a cartografia completa não apenas de nós mesmos mas daquilo a que pertencemos. E o resultado final não é amargurado, não é dorido, não é triste: é uma celebração da vida, porque
        (isto é tão evidente para mim, Nossa Senhora)
        Júlio Pomar pinta contra a morte: perante um quadro seu não me vem à ideia
        - Quem fez isto não acaba
        mas sim
        - Sou eu que não acabo porque ele fez isto
     ou seja, que me está a salvar da minha finitude com a sua obra, que é uma jubilação da inteligência dos sentidos. O poeta Paul Fort aconselhava que deixássemos os sentidos pensarem
        (laisse penser tes sens)
        o que apenas se torna possível com muito trabalho, muita tentativa, muito caminhar sem olhos
        (dado que isto se passa fundo, onde os olhos não chegam)
     alumiado pelo que usa chamar-se talento, génio, sei cá, e que consiste apenas, afinal, na capacidade de iluminar as coisas, de indicador feito vela, quando a electricidade falta. E, onde estão os leões, palavra de honra que não existem fusíveis. Então Pomar lá vai aos poucos, chama-os pelos nome e eles pronto, inteirinhos, poisados na concha, dado que no lugar em que os antigos escreviam
        aqui há leões
        e que é deles que os não topamos, Pomar segura-os pelo pescoço, diz sem palavras
        - Amanhem-se com esses
        e some-se no atelier em busca de uma nova remessa. Em certo sentido trata-se de uma vocação de carteiro: entrega o correio e continua até à porta seguinte. (...)
António Lobo Antunes, Terceiro Livro de Crónicas, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2006, pp. 103-105.

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