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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

ALMEIDA GARRETT E FREI JOAQUIM DE SANTA ROSA, NO DIA DO ANIVERSÁRIO DE JOSÉ SARAMAGO


Imagem daqui.




«Almeida Garrett e Frei Joaquim de Santa Rosa

Aqui há uns meses fui convidado a botar fala sobre a situação do romance português. Não só eu, claro, porque ao dito romance não bastariam para situá-lo (ou situacioná-lo) as minhas pobres palavras e frouxas ideias. A coisa acabou por não se fazer - e certamente não se fará. De modo que meti os papéis na gaveta e ali os deixei ficar, à espera não sei de quê. Do dia de hoje, visto que hoje os retiro e trago à luz. Mas a vaidade pessoal do autor não entra nessa decisão: como o leitor verá, o miolo da crónica pertence a Almeida Garrett (que todo o português honrado conhece) e a Frei Joaquim de Santa Rosa (que tenho o gosto de apresentar).

Depois de considerações gerais sobre problemas com o romance relacionados, dizia eu que tudo isso não era mais que uma cereja do farto molho que é a situação da vida portuguesa. E, de cerejas em punho, convidava o ouvinte (e agora convido o leitor) a apreciar o sabor delas, acautelando embora os dentes, por mor dos caroços. Vejamos a primeira: Almeida Garrett, Portugal na Balança da Europa, 1830: "Diz-se - e diz-se por caluniosos inimigos, assim como por loucos amigos - que a nação portuguesa não está preparada para a liberdade. Qual é o homem ou o povo que não esteja preparado para o natural estado do homem e da sociedade? - Mas o governo representativo sem o qual, no presente estado de ser das nações, a liberdade fora castigo e flagelo, que não bênção e gozo - o governo representativo, acrescentam, requer educação própria e especial, exige ilustração no povo; e nem todos os povos estão nesse ponto; portanto nem todos preparados para receber instituições livres.

"O argumento é especioso, e como tal a muitos seduz; mas a razão o destrói, e a experiência o desmente. Quem assim argumenta parece supor um tempo, uma época prévia ao estabelecimento do governo representativo, durante o qual o povo se estivesse educando para a liberdade. Ora nesse tracto de tempo algum havia de ser o governo que esse povo regesse: e claro está que não podia ser o liberal. Era então debaixo do despotismo que o povo se estaria educando para a liberdade?"

Enquanto assimilamos este suculentíssimo fruto (que vem de 1830, não esquecer), puxo do molho a segunda cereja, colhida no pomar pouco conhecido de José Timóteo da Silva Bastos, História da Censura Intelectual em Portugal, obra publicada pela Imprensa da Universidade de Coimbra, em 1926. Trata-se da sentença da Real Mesa Censória, em 1769, caída como um cutelo sobre o livro de madame de Lafayette, A Princesa de Clèves. Escreve o censor, Frei Joaquim de Santa Rosa, e eu actualizo a linguagem: "Este livro é de natureza, e contextura de outros muitos, que já se tem proibido nesta Mesa, mandando-se sair destes Reinos: trata dos amores profanos desta Princesa: ele só pode ser útil aos mercadores, e negociantes, porque com ele extraem a nossa moeda; e aos naturais é pernicioso, não só por sua matéria, mas também porque lhes consome o tempo, que poderão empregar na lição de livros úteis e interessantes. É pois o meu parecer, que se mande sair destes Reinos, e seus Domínios. Foram do mesmo parecer os Deputados adjuntos. Lisboa, em Mesa, 10 de Fevereiro de 1769."

Passaram duzentos anos. Se o leitor é desconfiado, pensou que estes textos foram fabricados por mim, com vista sabe-se lá a que inconfessáveis fins. Quanto aos textos, é fácil: busque as obras que citei e lá os encontrará. Sobre os fins, aqui ficam eles, honestamente confessados: que Frei Joaquim de Santa Clara não bula mais nas princesas de Clèves. E, de caminho, um voto: que Almeida Garrett venha dar uma volta pela sua velha pátria; que, depois de tudo muito bem visto, possa regressar ao descanso do túmulo com um sorriso de esperança; e que vá murmurando enquanto se acomoda: "Já não é mau que se diga em 1968 o que escrevi em 1830. Vou esperar uns tempos. Sempre hei-de ver como as coisas correm."

Conclusões? O espaço é pouco para elas, e esta crónica só poderá ser rematada pelo leitor. Por si, que me está lendo. Eu apenas falei de Almeida Garrett e de Frei Joaquim de Santa Rosa.»

José Saramago, "Almeida Garrett e Frei Joaquim de Santa Rosa", in Deste Mundo e do Outro, (crónicas publicadas, pela primeira vez, no jornal A Capital - 1968-1969), 2ª edição, Caminho, s/d, pp. 155-157.




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