Fernando Pessoa adolescente, em Durban Imagem daqui. |
"Há três
espécies de Portugal, dentro do mesmo Portugal; ou, se se preferir, há três
espécies de português. Um começou com a nacionalidade: é o português típico,
que forma o fundo da nação e o da sua expansão numérica, trabalhando obscura e
modestamente em Portugal e por toda a parte de todas as partes do Mundo. Este
português encontra-se, desde 1578, divorciado de todos os governos e abandonado
por todos. Existe porque existe, e é por isso que a nação existe também.
Outro é o
português que o não é. Começou com a invasão mental estrangeira, que data, com
verdade possível, do tempo do Marquês de Pombal. Esta invasão agravou-se com o
Constitucionalismo, e tornou-se completa com a República. Este português (que é
o que forma grande parte das classes médias superiores, certa parte do povo, e
quase toda a gente das classes dirigentes) é o que governa o país. Está
completamente divorciado do país que governa. É, por sua vontade, parisiense e
moderno. Contra sua vontade, é estúpido.
Há um
terceiro português, que começou a existir quando Portugal, por alturas de
El-Rei D. Dinis, começou, de Nação, a esboçar-se Império. Esse português fez as
Descobertas, criou a civilização transoceânica moderna, e depois foi-se embora.
Foi-se embora em Alcácer Quibir, mas deixou alguns parentes, que têm estado
sempre, e continuam estando, à espera dele. Como o último verdadeiro Rei de
Portugal foi aquele D. Sebastião que caiu em Alcácer Quibir, e presumivelmente
ali morreu, é no símbolo do regresso de El-Rei D. Sebastião que os portugueses
da saudade imperial projectam a sua fé de que a família se não extinguisse.
Estes
três tipos do português têm uma mentalidade comum, pois são todos portugueses
mas o uso que fazem dessa mentalidade diferencia-os entre si. O português, no
seu fundo psíquico, define-se, com razoável aproximação, por três
característicos: (1) o predomínio da imaginação sobre a inteligência; (2) o
predomínio da emoção sobre a paixão; (3) a adaptabilidade instintiva. Pelo
primeiro característico distingue-se, por contraste, do ego antigo, com quem se
parece muito na rapidez da adaptação e na consequente inconstância e
mobilidade. Pelo segundo característico distingue-se, por contraste, do
espanhol médio, com quem se parece na intensidade e tipo do sentimento. Pelo
terceiro distingue-se do alemão médio; parece-se com ele na adaptabilidade, mas
a do alemão é racional e firme, a do português instintiva e instável.
A cada um
destes tipos de português corresponde um tipo de literatura.
O português
do primeiro tipo é exactamente isto, pois é ele o português normal e típico. O
português do tipo oficial é a mesma coisa com água; a imaginação continuará a
predominar sobre a inteligência, mas não existe; a emoção continua a predominar
sobre a paixão, mas não tem força para predominar sobre coisa nenhuma; a
adaptabilidade mantém-se, mas é puramente superficial — de assimilador, o
português, neste caso, torna-se simplesmente mimético.
O português do tipo imperial absorve a inteligência
com a imaginação — a imaginação é tão forte que, por assim dizer,
integra a inteligência em si, formando uma espécie de nova qualidade mental.
Daí os Descobrimentos, que são um emprego intelectual, até prático, da
imaginação. Daí a falta de grande literatura nesse tempo (pois Camões,
conquanto grande, não está, nas letras, à altura em que estão nos feitos o
Infante D. Henrique e o imperador Afonso de Albuquerque, criadores
respectivamente do mundo moderno e do imperialismo moderno) (?). E esta nova
espécie de mentalidade influi nas outras duas qualidades mentais do português:
por influência dela a adaptabilidade torna-se activa, em vez de passiva, e o
que era habilidade para fazer tudo torna-se habilidade para ser tudo."
Fernando Pessoa, Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional, (recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão; introdução de Joel Serrão), Lisboa, Ática, 1979.
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