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| "Amor", Carlotta Castelnovi | 
POEMA DO AMOR
Este é o poema do amor.
Do amor tal qual se fala, do amor sem mestre.
Do amor.
Do amor.
Do amor. 
Este é o poema do amor.
Do amor das fachadas dos prédios e dos recipientes do lixo.
Do amor das galinhas, dos gatos e dos cães, e de toda a espécie de bicho. 
Do amor.
Do amor.
Do amor.
Este é o poema do amor.
Do amor das soleiras das portas
e das varandas que estão por cima dos números das portas
com begónias e avencas plantadas em tachos e terrinas.
Do amor das janelas sem cortinas
ou de cortinas sujas e tortas. 
Este é o poema do amor. 
Do amor das pedras brancas do passeio
com pedrinhas pretas a enfeitá-lo para os olhos se entreterem,
e as ervas teimosas a nascerem de permeio
e os homens de cócoras a raparem-nas e elas por outro lado a crescerem.
Do amor das cadeiras cá fora em redor das mesas 
com as chávenas de café em cima e o toldo de riscas encarnadas.
Do amor das lojas abertas, com muitos fregueses e freguesas
a entrarem e a saírem, e as pessoas todas muito malcriadas. 
Este é o poema do amor.
Do amor do sol e do luar,
do frio e do calor,
das árvores e do mar, 
da brisa e da tormenta,
da chuva violenta,
da luz e da cor.
Do amor do ar que circula 
e varre os caminhos 
e faz remoinhos
e bate no rosto e fere e estimula.
Do amor de ser distraído e pisar as pessoas graves,
do amor de amar sem lei nem compromisso, 
do amor de olhar de lado como fazem as aves,
do amor de ir, voltar, e tornar a ir, e ninguém ter nada com isso.
Do amor de tudo quanto é livre, de tudo quanto mexe e esbraceja,
que salta, que voa, que vibra e lateja.
Das fitas ao vento, 
dos barcos pintados,
das frutas, dos cromos, das caixas de tintas, dos supermercados.
Este é o poema do amor.
O poema que o poeta propositadamente escreveu 
só para falar de amor, 
de amor, 
de amor,
de amor, 
para repetir muitas vezes o amor,
amor, 
amor, 
amor. 
Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico 
contar as palavras que o poeta escreveu, 
tantos que, 
tantos se, 
tantos lhes, 
tantos tu, 
tantos ela,
tantos eu, 
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor, 
amor, 
amor.
Este é o poema do amor. 
GEDEÃO, António - Obra Completa. Sta. Maria da Feira: Relógio D' Água Editores, 2004. ISBN 972-708-790-6, p. 211-213.
O livro está disponível na BE.