"Amor", Carlotta Castelnovi |
Piropo
A vida de qualquer rapaz deve ser ler,
escrever e correr atrás das raparigas. Esta última parte é muito importante.
Hoje em dia, porém, os rapazes de Portugal já não correm atrás das raparigas -
andam com elas. A diferença entre «correr atrás» e «andar com» é, sobretudo,
uma diferença de energia. Correr é galopar, esforçar, persistir, e é alegria,
entusiasmo, vitalidade. Andar é arrastar, passo de caracol, pachorrice,
sonolência. O amor não pode ser somente uma partida de golfe, em que dois
jarretas caminham devagar em torno de alguns buraquinhos. Tem de ser, pelo
menos, os 400 metros barreiras.
(...)
(...)
Os
rapazes de hoje já não perguntam às raparigas se os anjos desceram à terra, ou
que bem fizeram a Deus para lhes dar uns olhos tão bonitos. Dizem
laconicamente, com o ar indiferente que marca o «cool» da
contemporaneidade «Vamos aí?». Ou simplesmente «Bora
aí?». Nos últimos tempos, tanto em Lisboa como na linha de Cascais, esta
economia de expressão atingiu até o cúmulo de se cingir a um breve e boçal
«Bute?». «Bute» significa qualquer coisa como «Acho-te
muito bonita e desejável e adoraria poder levar-te imediatamente para um local
distante e deserto onde eu pudesse totalmente desfazer-te em sorvete de
framboesas». Mas, como os rapazes só dizem «Bute:», são as pobres
raparigas que têm de fazer o esforço todo de interpretação e de enriquecimento
semântico. São assim obrigadas a perguntar às amigas «Ó Teresinha, o que é
que achas que ele queria dizer com aquele bute?». E chegam à desgraçada
condição de analisar as intenções do rapaz mediante uma série de considerações
pouco líricas - foi um «Bute» terno ou ríspido, sincero ou mentiroso, terá sido
apaixonado ou desapaixonado?
Isto
não pode ser, até porque há uma tradição a manter. Imagina-se alguma rapariga a
dizer «Ai, Lena... quando ele disse 'Bute' subiu-me o coração à boca!». A verdade
é que o coração é um órgão bastante preguiçoso e só se dá ao trabalho de subir
à boca quando se lhe dão excelentes motivos para isso.
De
uma maneira geral, todas as palavras que não se imaginam num soneto de Camões
são impróprias. O amor pode ser um fogo que arde sem se ver, mas não basta
tomar o facto por dado e dizer simplesmente «Bute» - é preciso dizer que arde
sem se ver. Mesmo que não arda, mesmo que se veja.
CARDOSO, Miguel Esteves - A Causa das Coisas. Lisboa: Assírio & Alvim, 6ª ed. 1988, p. 227-228.
O livro está disponível para requisição na BE da ESJS.
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