DO PRÍNCIPE, DOS CONSELHEIROS E DOS CONSELHOS
“O Conselho, voto, e parecer dos Conselheiros he hum aviso, que se toma sobre couzas duvidosas, para naõ errar nellas: toma-se sobre couzas, que naõ estaõ na nossa maõ; naõ se toma sobre couzas infalliveis, porque estas pedem execuçaõ, e naõ conselho; deve ser de couzas possiveis, e futuras; porque as impossiveis presentes, e passadas já naõ tem remedio. Naõ deixa o conselho de ser bom, por sahir o successo máo; nem o máo conselho deixa de o ser, por ter bom successo; porque os successos são da fortuna, e dependem das execuçoens; que muitas por serem más, damnaõ a bondade dos conselhos; e também por serem boas, emendaõ ás vezes o erro do conselho. (…) He muito prejudicial saberem os Conselheiros, o que o Principe quer; porque logo buscaõ razoens, com que o justifiquem. O Conselheiro naõ ha de approvar tudo, o que o Principe disser; porque isso será ser lisongeiro, e naõ Conselheiro. Muitos naõ tem nos conselhos respeito ao que se diz, senaõ a quem o diz; se he amigo, vaõ-se com elle: senaõ he do seu humor, ou parcialidade, reprovaõ-no: e he muito prejudicial modo de governar este. Pequenos erros, que no principio naõ se sentem, saõ mais perigosos, que os grandes, que se vêm; porque o perigo, que se entende, obriga a buscar o remedio; mas os erros, que se naõ sentem, ou dissimulaõ, crescem tanto pouco a pouco, que quando se advertem, já naõ tem remedio; (…)
Conselhos bons saõ muito bons de dar, mas muito máos de tomar: muitos os daõ, e poucos os tomaõ. Conselhos máos tem duas raízes: ou nascem de odio, ou de ignorancia: por peores tenho os primeiros; porque a ignorancia procede da fraqueza, e o odio resulta da malicia; e a malicia he peor inimigo que a fraqueza. E até nos bons conselhos pódem reinar o odio, e a malicia, quando muitos os daõ, e poucos os tomaõ; ou seja no termo a quo, quando se dá conselho, pois todos o lançaõ de si; ou seja no termo ad quem, quando se recebe, pois poucos o admittem. Que sejaõ tomados com aborrecimento, he couza muito ordinária: que sejaõ dados com odio, naõ he taõ commum; mas he grande mal; porque nunca póde ser boa a planta, que nasce de má raiz, ou se enxerta em roim arvore. E com ser máo o conselho deslindado nesta forma, era muito bom para ser dinheiro pela propriedade que tem; e já dissemos, que muitos o daõ, e poucos o tomaõ. Em huma couza se parece muito o conselho com o dinheiro, e he, que ambos saõ muito milagrosos. Tres milagres muito grandes achou hum discreto no dinheiro; naõ há quem os naõ experimente, e por serem muito ordinários, ninguem faz memoria deles. Primeiro, que nunca ninguem se queixou do dinheiro, que lhe pegasse doença. Segundo, que nunca ninguem teve nojo delle. Terceiro, que nunca cheirou mal. Digo que nunca ninguem se queixou delle, que lhe pegasse doença; porque andando por maõs de quantos leprosos, sarnosos, morbogallicos, e empéstados há no mundo, e passando dellas para as maõs do mais mimoso fidalgo, e da mais delicada donzella, nenhuma doença sabemos, que lhes pegasse, mais que fome de lhe darem mais. Donde colho que naõ he bom o dinheiro para paõ; que se fora paõ, nunca houvera de matar a fome. Digo mais, que nunca ninguém teve nojo do dinheiro; porque o recolhem em bolças, de ambar, e seda, o guardaõ no seyo, e até na boca o metem, sem terem asco delle, nem se lembrarem, que tem andado por mãos de regateiras, ramelozas, e de lacayos rabugentos, e de negros raposinhos. E digo finalmente, que nunca cheirou mal a ninguem; porque bem póde elle sahir da mais immunda cloaca, respira nelle bemjoim de boninas; ainda que venha entre enxofre, há-lhes de cheirar a ambar, algalia, e almíscar. Tal he o conselho: se he bom, nenhum mal faz: se he máo, ninguem tem nojo delle, nem lhe cheira mal; ainda que venha envolto em fumaças do Inferno, parecem-lhe perfumes aromáticos do Paraiso: e entaõ mais, quando vem deslumbrando com tais nevoas, que tolhem a vista de seu conhecimento. De tudo o dito se colhe, que se divide o conselho em bom, e máo: se he bom, recebe-se com aborrecimento, se he máo, dá-se por odio. Quando se recebe por aborrecimento, nada obra, por bom que seja: quando se dá por odio, pertende arruinar tudo, e alcança o intento, tanto que se aceita. Deos nos livre de ser odioso o conselho, tanto me dá por respeito de quem o dá, como por parte de quem o recebe: em manquejando por algum destes dous pólos, ou naõ temos fé nelle, ou executa a peçonha que traz: e de qualquer modo causa ruinas, e grandes perdiçoens. Para se livrar o Principe de todas estas Scylas, e Charybdes, deve conhecer bem de raiz os talentos, e animos de seus Conselheiros: e faça porisso, porque nisso está a perda, ou ganho total de seu Imperio.”
Arte de Furtar. Edição crítica, com introdução e notas de Roger Bismut, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1991 (Bismut apoia a autoria do Padre Manuel da Costa), pp. 219-220.
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