Antigo blogue do projeto novasoportunidades@biblioteca.esjs

Antigo blogue do projeto novasoportunidades@biblioteca.esjs, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian
Escola Secundária José Saramago - Mafra

sexta-feira, 8 de junho de 2012

HERBÁRIO CAMILIANO

Chemin montant dans les hautes herbes (1875), de Pierre-Auguste Renoir


“Depois, o Fístula portou-se bem, laborioso, inteligente. Ia à colheita das ervas na estação própria, e fazia manipulações, aviava receitas com limpeza, assobiando fados cheios de saudades das Travessas e dos seus condiscípulos malandros. Conhecia as flores do urgebão, em espigas filiformes, roxas, de sabor amargo, boas para cataplasmas com gemas de ovos nas intumescências do fígado; as urtigas, sedosas, cheias de tubérculos que espirram à epiderme um líquido cáustico, e que bem espremidas dão um suco muito medicinal na brotoeja; a alfavaca sudorífera; a arruda, muito oleosa, de um odor acre, muito usada em infusão pelas mulheres opiladas, amarelas, congestionadas, histéricas, com grande peso nas virilhas e zumbidos nas orelhas; a parietária vermelha, empubescida, acre, nitrosa, muito diurética; a malva emoliente, estimável em gargarejos e clisteres e nos semicúpios refrigerantes; o verbasco que frutifica umas cápsulas biloculares muito peitorais; a bardana dos monturos, de raiz fusiforme, tónica, sudorífera, antídoto das herpes; a salva, de flor violácea, aromática, muito provada nas esquinências, gargarejada com um golpe de mel; os grãos do funcho estriados, cilíndricos, famosos nas cólicas; a erva-cidreira, de aroma citrino, excitante, digestiva e antiespasmódica; a erva-moura que é narcótica; a hortelã vermelha, eficaz contra o reumatismo e nos narizes tapados por fluxões crassas; a mostarda, sinapis nigra, a do sinapismo, o divino sinapismo derivativo, revulsivo, que puxa às pernas o morbo do cérebro, dos olhos, da garganta; as bagas dos murtinhos para lavagem das impigens, cozidas e feitas em pó, muito antipútridas, contra chagas canceradas, crónicas; a tília para os chás das velhas que impam e arrotam com grandes borborigmos de gases, e dizem que têm flato. Conhecia todas as ervas e arbustos que secavam em tabuleiros na eira. E os porcos às vezes foçavam nas ervas e raízes, misturando-as; mas ele com o fino sentimento moderno ecléctico em terapêutica, colhia do sequeiro as plantas às manadas e atirava com elas às gavetas que tinham rótulos grudados (…). Ele também manipulava o unguento de basilicão, derretendo o pez no azeite e na cera; e, quando o mexia no gral, zangava-se, dando ao diabo a farmácia, ou cantava fados com um grande azedume mefistofélico. Fazia ceroto de espermacete, com que se curavam os cáusticos e as queimaduras; e o unguento de Genoveva e o de Madre Tecla, muito bom para amadurecer abcessos com o seu litargírio, e sebo de carneiro; não lhe punha a manteiga da fórmula porque preferia comê-la com pão trigo. Havia grande provisão em potes de unguento da Madre Tecla, receita que lhe ensinara o brasileiro da Casa Grande, muito atreito a furúnculos nas costas e na região sob e sobre; tinha de sua lavra muitos frascos de pomada mercurial de que ele gastava um terço no seu consumo próprio pessoal; enquanto o pai e o abade, inveterados nas hemorróidas, lhe gastavam em breves prazos o unguento de populeão em unturas, de cócoras, José Macário, o Fístula, trabalhava, regenerava-se.”
Camilo Castelo Branco, Eusébio Macário, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1991, pp. 46-47.

Sem comentários:

Enviar um comentário